26 September 2008

MÚSICA CLÁSSICA



Richard Thompson - Mock Tudor




Randy Newman - Bad Love

Ser um clássico é assim. Mesmo que, no caso, não se trate de dois clássicos cujos nomes andem propriamente na ponta da língua de toda a gente. O que é ainda uma outra forma de ser clássico, se quiserem, um clássico dos "selected few". Richard Thompson e Randy Newman pertencem indiscutivelmente a essa categoria, a qual lhes autoriza a possibilidade de — quando estão para aí virados, é outro luxo de poucos — gravarem discos que, sem exibirem a ambição de descobrir a roda pela segunda vez, se podem gabar de não descender de mais nada nem de mais ninguém que não seja a obra dos seus próprios autores. E que nos obriga a não os comparamos senão com eles mesmos ou com os seus pares da mesma estatura.



Acerca de Richard Thompson, quem precisa e merece sabê-lo, já conhece tudo: como, a bordo dos Fairport Convention, inventou o folk-rock britânico e registou uma das mais imaculadas séries de música tradicional/electrica/contemporânea; como, na companhia de Linda Thompson, publicou pelo menos um disco-para-a-ilha-deserta-de-quem-tem-ouvidos — I Want To See The Bright Lights Tonight — e vários outros de que só não se diz o mesmo porque, dessa forma, se calhar, ninguém acreditava; como, a solo, continuou a constituir uma daquelas preciosas excepções de alguém que, após, mais de trinta anos de carreira, cada nova publicação ainda faz os tais "selected few" correr para as lojas como se fosse a primeira. Quem não sabe nada disto pode, já agora, fazer os trabalhos de casa em atraso e procurar — vale a pena o esforço, garanto — Watching The Dark/The History of Richard Thompson, resumo essencial de música essencial editado em 1993 pela Rykodisc. Depois, claro, vai querer os outros todos e (ruina económica por ruina económica, não é mais um que vai mudar muito as coisas) o último Mock Tudor também. E assim é que está certo.



É que Mock Tudor é bom, é mesmo extraordinariamente bom. Thompson garante-nos que é uma espécie de diário intímo das suas relações com a cidade de Londres ao longo de uma vida mas ele podia perfeitamente chamar-se Thierry Dupont e viver em Reykjavik que, se a alma fosse a mesma, as canções seriam iguais. Precisamente pelas razões por que nunca ninguém se lembrou de escrever um ensaio acerca da influência determinante que nele terá tido o facto de, há quase duas décadas, se ter convertido ao islamismo. Porque não teve nenhuma. O mundo é uma boca de esgoto fétida e, islâmico ou hindu, em Londres ou na Tasmânia, Richard Thompson não consegue evitar que cada canção funcione como um espelho colocado à frente da realidade. Aquela onde ele se movimenta ou a outra (afinal, a mesma) que, dentro de si, lhe desarruma as emoções.



Daí que Mock Tudor, ao contrário do que se poderia esperar, tenha muito pouco de "site specific": "Sibella", "Bathsheba Smiles", "Crawl Back", "Uninhabited Man", ou "That's All, Amen, Close The Door" são daquelas canções de amor violentamente envenenadas de ódio em que ele se especializou (as particularíssimas "love gone wrong songs" que June Tabor tanto gosta de recriar), "Hope You Like The New Me" é um portentoso exercício de cinismo e até a única que poderia parecer um pouco mais "londrina", "Sights And Sounds Of London Town", é apenas uma aguarela pintada com água suja de sarjeta que se inicia com o "soliciting" de uma prostituta em Euston Road e encerra com a silhueta desgraçada de um pequeno bandido do Soho. Isto é, Richard Thompson igual a si próprio, quer dizer, excelente e único.



Randy Newman, o ilustríssimo cinquentão herdeiro de uma não menos ilustre família de Newmans com história feita na música para o cinema e adjacências, não será, aparentemente, tão amargo mas também não vê o mundo através de lentes cor de rosa. Se, no "craftsmanship", é um descendente directo de Gershwin ou Cole Porter, o que, ao longo de três décadas, tem vindo a edificar não é senão um mosaico bastante pouco amável do mundo (e da América em especial) sob o disfarce de canções prazenteiras e enganadoramente "familiares". Bad Love (o título já faz desconfiar...) não foge muito à regra.



Recobertas por sofisticadas orquestrações e confortavelmente aninhadas no piano quase-ragtime de Newman, há histórias patéticas de pura abjecção ("Shame"), autoflagelação ("I'm Dead But I Don't Know It"), um diálogo imaginário com Karl Marx acerca da injustiça do mundo e de como nada há fazer em relação a isso ("The World Isn't Fair") ou um grandioso e ácido hino acerca do colonialismo europeu ("The Great Nations Of Europe") onde portugueses e espanhóis — não há comemorações politicamente correctas dos Descobrimentos que lhes valham — são retratados como as exactas bestas selvagens que eram no século XVI. Na última canção, uma franquíssima e divertida confissão de insegurança, ele declara "I want everyone to like me, I want everyone to like me bad, I want everyone to approve of me, 'cause when they disapprove of me it makes me feel so sad". Não tenhas problemas, Randy, gostamos. Muito.

(1999)

7 comments:

Anonymous said...

Prezado João,

Please forgive my English, as I suspect your English is much better than my Portuguese (which I can read, but not well).

As good as Mock Tudor is, I have a strong preference for the live CD that Thompson later released -- under the title of Semi-Detached Mock Tudor. It contains most of the same material, without the clutter of the studio arrangements. Unfortunately it's only available direct from Thompson's website, or possibly at gigs.

I was fortunate enough to hear Thompson and band live when he was featuring the Mock Tudor material.

Um abraço,

C

Táxi Pluvioso said...

Pensei que fosse alguma regra lusa. Então, falando em bom senso, o problema mantém-se. O nome do grupo é The Beatles, The Clash, The National e não deve ser traduzido, ou então traduz-se tudo: os batelos, os choque, os nacional. Escrever “pelos The Beatles”, “pelos The Clash”, “pelos The National” estaria correcto. Se o nome fosse apenas Beatles, Clash, National, a conversa seria outra. Como no caso dos “the Cream”, em inglês, o the vem em letra minúscula, pois não pertence ao nome do grupo.

(Desculpa lá mas não percebo porque traduzes só o "The". Pode ser muito bom senso mas eu fui ensinado que os nomes próprios não se traduzem. Portanto The Beatles é The Beatles e não os Beatles, na escrita, na linguagem falada, é outra história).

Tal como em português seria correcto escrever pel’ Os Conchas e não pelos Conchas, retirando uma parte do nome do grupo. Mas, como está a língua, e os que a falam, preocupados com a crise financeira e o bailout, anything goes…

ND said...

um prazer.

João Lisboa said...

"Please forgive my English, as I suspect your English is much better than my Portuguese (which I can read, but not well)"

Hi Chris! Thanks for your tip. I will certainly check "Semi-Detached Mock Tudor". Does it sound anything like the performances of the Scottish TV show in the YouTube clips I posted here?

Dreamers Rise - in a quick glance - looks great. I will link it to Provas de Contacto. Meanwhile... pratice your Portuguese!...

Abraço.

João Lisboa said...

I mean... "practice".

João Lisboa said...

Taxi, de facto, devo estar a ser picuínhas de mais: no admirável mundo novo Magalhães, não mais nos teremos de preocupar com tais minudências. Vou passar a escrever O Avião de Jeffersão. Ou de outra maneira qualquer!

Anonymous said...

"Does it sound anything like the performances of the Scottish TV show in the YouTube clips I posted here?"

I would say yes. It looks like the same band, with Teddy Thompson and Pete Zorn, etc. If I remember right, though, the live CD was recorded in the US.