07 July 2008

O MUNDO CORREU MAL



Neil Young - Living With War




Paul Simon - Surprise

A estatística negra, um dia, será feita. Mas a forma rotineira e criminosamente banalizada com que, todos os dias, ouvimos relatar mais umas dezenas de mortos no Iraque, faz prever que a "guerra de libertação" da velha Mesopotâmia se poderá saldar por um sucesso pelo menos tão estrondoso quanto o de há quarenta anos, no Vietname. Somar ainda Guantanamo. E Abu Ghraib. E as notícias dos heróicos "libertadores" jogando à bola com cabeças decepadas. E o incêndio nunca dominado do Afeganistão que se reacende e alastra, agora à Somália. O mundo correu mal e, dos capítulos que se seguem, não é obrigatório ser pessimista para se esperar ainda bem pior. Nem tanto seria preciso para que veteranos do combate contra o anterior desastre histórico como Neil Young ou Paul Simon (e o We Shall Overcome/The Seeger Sessions, de Bruce Springsteen, também não é inocente...) reacendessem a chama militante ou, tão só, aquilo a que George Orwell chamava a "common decency".



Se antes escreveram e cantaram "Ohio" ou "The Sounds Of Silence" é apenas natural que, hoje, um dedique um álbum inteiro — Living With War — a uma colecção de panfletos musicais inflamados contra a política da actual administração norte-americana e o outro, mais elipticamente, por entre interrogações existenciais, trocas de mensagens com deus e uma escrita repleta de alusões e enigmas, vá semeando Surprise de comentários sobre o desgraçado estado do mundo. Não são essas as únicas diferenças. O método-Neil Young é "curto e grosso": rock quadrado, agit-pop em estado puro, melodias deliberadamente primárias e repetitivas amplificadas por um omnipresente coral de cem elementos — "a voz do povo" —, disparando mimos como "Let's impeach the President for lyin' and misleading our country into war, abusing all the power that we gave him and shipping all our money out the door" ou "What if Al-Qaeda blew up the levees, would New Orleans be safer that way, sheltered by our government's protection or was someone just not home that day?", glosando as "Chimes Of Freedom" de Bob Dylan ("Flags Of Freedom") e terminando em arrebatamento patriótico colectivo ao som de "America The Beautiful", reivindicando para si a legitimidade de "home" dos verdadeiros "brave and free". O exacto tipo de disco cujo valor se medirá exclusivamente pela eficácia do efeito que deseja produzir.



Surprise joga noutro tabuleiro: o mesmo Paul Simon que, partindo da folk, convidou para a sua equação musical privada o reggae, Philip Glass, Nile Rodgers/Bernard Edwards, o mbaqanga sul-africano ou as percussões da Bahía, chamou agora Brian Eno para actuar na qualidade de aguarelista electrónico e propulsor rítmico de um volume de canções que (ao contrário de Graceland ou Rhythm Of The Saints em que surgiram da própria experiência de "give and take") se encontravam previamente escritas. Durante quase metade do álbum — as cinco primeiras canções de um total de onze — a coabitação é quase perfeita:



Eno acrescenta profundidade e "groove" às melodias e aos belíssimos textos de Simon onde este planta bombas subliminares como "How can you live in the Northeast? How can you live in the South? How can you build on the banks of a river when the flood water pours from the mouth?", alfinetadas com auto-ironia woodyalleniana incluída do estilo de "It's outrageous to line your pockets off the misery of the poor, outrageous the crimes some human beings must endure, it's a blessing to wash your face in the summer solstice rain, it's outrageous a man like me stand here and complain" e "I registered to vote today, felt like a fool, had to do it anyway, down at the high school" ou, sobre novas "troubled waters", levanta o hino quase-gospel de "Wartime Prayers": "People hungry for the voice of god hear lunatics and liars, wartime prayers, wartime prayers in every language spoken, for every family scattered and broken". A partir daí, no entanto, Eno e Simon parecem perder o pé, as canções como que deslassam e abdicam do veneno no champanhe a favor da ruminação introspectiva e nem uma única "surprise" volta a acontecer. Apenas meio óptimo álbum onde o recado ficou dado.

(2006)

5 comments:

Anonymous said...

E não esquecer de endereçar ao "Surprise" o troféu de pior capa de album da década.

Anonymous said...

Mas o Neil Young não é canadiano? nuno

João Lisboa said...

"Mas o Neil Young não é canadiano?"

É. Ele também se refere a isso no "tubo" em que é entrevistado: canadiano, casado com uma americana e com filhos americanos. E fervorosamente patriota. E ex-apoiante do Ronald Reagan.

Anonymous said...

"Ele também se refere a isso no "tubo" em que é entrevistado"

Ok. Ainda não ouvi o tubo (estou no trabalho...).É para aprender de vez a não comentar sem ver tudo. nuno

Anonymous said...

Maior problema são as capas excelentes para música de péssima qualidade aaa...