A DESPEDIDA DO MUNDO
(encerrando outro microciclo)
(foto daqui)
Tivesse Leonard Cohen estado, no sábado passado, naquele palco à beira-Tejo, rodeado por uma banda que integrasse um saxofonista adestrado nos mais afamados estabelecimentos de Las Vegas, um alaúdista vencedor do prémio “trinado de ouro”, um teclista atreito a surtos de grande mal epiléptico sobre o Hammond, um guitarrista da escola-as-minhas-seis-cordas-são-um-pôr-do-sol-em-Honolulu e um trio de doces rolas arrulhantes, e, caso (por insondáveis motivos) alguém se sentisse virado para a difamação, talvez houvesse alguma – pouquíssima, quase nenhuma – legitimidade para afirmar que aquele não tinha sido um grande concerto.
Não, reflectindo melhor, nem essa absurda hipótese o justificaria: Cohen é o género de personagem a quem só conseguimos autorizar desabafos como “Give me back the Berlin wall, give me Stalin and St Paul, give me Christ or give me Hiroshima, destroy another foetus now, we don't like children anyhow, I've seen the future, baby: it is murder” se a blasfémia for dissimulada por aquela teatralidade sonora que costuma dizer bem com a farda do “garçon” que nos aconselha o tinto cujos taninos melhor realçam o paladar do “confit de canard”. Ou por aquela outra, favorita de “boudoir”, no instante em que as cortinas se cerram e o penitente implora “I'd crawl to you baby, and I'd fall at your feet, and I'd howl at your beauty like a dog in heat, and I'd claw at your heart, and I'd tear at your sheet, I'd say please, please, I'm your man”.
Nada disso, no entanto, naquela noite, se verificou: à nossa frente, num plano naturalmente muito mais elevado, estava apenas Leonard Cohen. Ao contrário da ilusão com que os nossos pobres sentidos nos pretendiam ludibriar, não havia mais ninguém. Ele, sozinho, num gesto de adeus, conduzindo, com desmedida cortesia, as manobras de um teatro de sombras onde balzaquianas ondulam ao som de valsas e o “lip-gloss” escarlate trauteia, sorridente, “too early for the rainbow, too early for the dove, these are the final days, this is the darkness, this is the flood”, ele repete que “everybody knows that the plague is coming, everybody knows that it’s moving fast” e os braços se erguem, adoravelmente felizes, em comunhão. Cohen despediu-se de nós, despediu-nos do mundo e, por razões diferentes, todos lhe ficámos gratos.
(2008)
27 July 2008
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6 comments:
Que bonito... Uma foto minha num texto do Cohen! Obrigada. *****
Don't mention it. Mas (ainda) não é num texto "do Cohen". Lá chegarás...
João, quando souber onde actua «uma banda que integrasse um saxofonista adestrado nos mais afamados estabelecimentos de Las Vegas, um alaúdista vencedor do prémio “trinado de ouro”, um teclista atreito a surtos de grande mal epiléptico sobre o Hammond, um guitarrista da escola-as-minhas-seis-cordas-são-um-pôr-do-sol-em-Honolulu e um trio de doces rolas arrulhantes», agradecia-lhe que me avisasse.
Entretanto, você armou-me um tarantãtã do caraças com o clip "Introduction", dos Tindersticks. Felizmente consegui o CD para descansar a retina... abraço
"Mas (ainda) não é num texto "do Cohen". Lá chegarás..."
You're too kind. ;) Esqueci-me das aspas, evidentemente. Mas isso de eu me esquecer de coisas ainda há-de fazer correr muita gargalhada... :D
"João, quando souber..."
Será o primeiro a saber.
Pelos vistos a maior-idade significa a maior-tolerância. Apreciar e comentar o passado mais do que a actualidade. O Cohen esteve tão rouco e degradado (infelizmente) quanto a Amália nos seus últimos concertos. Ainda assim, é motivo de elogio em vez de crítica.
O texto é menor, menos enquandrante e completamente ausente de observação e informção como o ulterior. Este apenas diz que: o Cohen é o melhor, de bracitos levantados. Se calhar, não há nada para dizer. Mas isso é um assunto por si mesmo que merecia alguma atenção a quem digne ao esforço de deixar informação escrita, não emoções...
Que raio de desilusão...
sophia
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