LEONARD COHEN, CASCAIS, FEVEREIRO DE 1985
Para uma boa parte do público (e, não levando o esforço de rigor ao nível da estatística, poder-se-à dizer uma provável maioria), o concerto de Leonard Cohen, em Cascais, na passada segunda-feira, não terá sido muito mais do que uma prolongada espera até cerca do meio da segunda parte, quando, finalmente, Cohen iniciou a interpretação de "Suzanne". "And, if Suzanne had been taken away from me, as misteriously as she came to me, would you start to hate me?..." perguntou um Cohen irónico perante a furiosa insistência do público que persistia em não ver no palco apenas Leonard Cohen mas, acima de tudo, a banda sonora das aventuras, eventualmente mal terminadas de uma geração fechada entre os limites de Maio de 68 e do 25 de Abril de 1974, com desvios e atavios mais ou menos híppicos pelo meio do percurso.
Com efeito, as previsões mais pessimistas parece terem-se confirmado: o "clube de amigos de Alex" (associação para-sindical de profissionais autoflagelantes da desilusão geracional) compareceu em peso para a celebração de um grande encontro de nostalgia daquela época em que, para não esquecer a "dimensão estética da existência", entre duas utopias bem medidas, escutavam os discos de Leonard Cohen sem se darem conta de como ele era, já então, alheio a quase tudo o que motivava o movimento quase browniano dessa geração. Pela Revolução (assim, com maiúscula), Cohen sempre manteve uma, nem sequer mal-disfarçada, desconfiança de quem suspeita ela não ser mais do que um negócio enganador e moralmente pouco limpo, no qual "all the brave young men are waiting out to see a signal which some killer will be lighting for pay" ("The Old Revolution"); da Liberdade, guardou a noção de algo que apenas individualmente se busca, de maneira tristemente desajeitada, "como um verme num anzol" ("Bird On The Wire"), e que, mesmo quando ganha uma conotação mais claramente política - como em "The Partisan" -, só por entre túmulos consegue soprar; quanto a Utopia, será palavra de que Cohen, possivelmente, desconhecerá o sentido, não havendo muitos que, como ele (em "Diamonds In The Mine"), tenham tão higiénica e literalmente incinerado tudo quanto pudesse vagamente cheirar a esperança.
A desconfiança em relação à "bondade humana essencial" é uma das constantes: "I will help you if I must, I will kill you if I can, man of peace or man of war, the peacock spreads his fan", diz, muito judaica e biblicamente, Cohen, por outras palavras, em "Story Of Isaac", que "tudo é vaidade". Mesmo a Beleza que ele exalta é, tão só, a mesma que Rimbaud - um ilustre antepassado - sentou sobre os joelhos, achou amarga e injuriou. Porém, o Cohen para quem milhares de isqueiros, inevitavelmente, se acenderam durante "Suzanne" e, perante o qual, filas de pessoas ondularam em 6/8, ao som de "Bird On The Wire", não foi o que apenas se sabe debater com conceitos tão avassaladores maiores como o Bem, o Mal ou a Culpa ("I don't claim to be guilty, guilt is too grand", diz ele em "The Law") mas sim a imagem tonta e iludida do "poeta de uma geração". Para os outros (os sem geração de todas as gerações que conseguem reconhecer Cohen nele próprio), quando a banda de apoio refreou a sua incomodativa tendência para se evidenciar, ele esteve presente, não apenas mas sobretudo, em "Avalanche" e "The Stranger Song" que, a abrir a segunda parte, cantou a solo. Ele, L. Cohen.
(1985)
13 comments:
«sentou sobre os jelhos»
João Lisboa: Uma crítica tão brilhante não merece esta gralha. Se quiser, pode, depois, apagar o comentário e a «coisa» fica no segredo dos Deuses. Pronto, missão cumprida. Agora já posso ir ao meu blog desancar num jornalista imbecil da «Visão» que foi devidamente humilhado numa entrevista ao Lou Reed (e depois queixam-se que o homem tem mau feitio..)
Apago nada! Corrijo.
Obrigado.
(e tive de ler duas vezes para perceber onde estava a gralha)
"desvios e atavios mais ou menos híppicos" é deliciosamente cinematográfico.
Ao ler-te agora (não li então) recordo-me que ontem pensei muitas vezes que gostava muito de o ter visto em 85 (ou 80, ou mais ou menos; enfim, despojado desta fragilidade já tão carente do cuidado que não queríamos ter de dar-lhe), quando era ícone do que lemos nos seus poemas e ainda espreitamos nos seus passos.
Dizem que "talvez" o Leonard Cohen venha ao Tim Festival. As gravações dele só foram lançadas no Brasil em 1989, se não me engano. Espero que não tenha o desprazer de encontrar a geração 68. O terceiro mundo talvez traga surpresas mais agradáveis.
7 anos, tinha eu à data deste concerto! bem me parecia que, se tivesse os 14 de que falavas no sábado, já não teria faltado à missa. assim sendo, estou desculpada.
" "clube de amigos de Alex" (associação para-sindical de profissionais autoflagelantes da desilusão geracional)"
Sublinho este comentário porque, de certa forma, me deu dados sobre o "mito" e o "não-mito" do senhor que insiste em assombrar a "geração X”. É, sem dúvida um gajo importante na medida em que não há caroço que não o conheça e sobre o qual não se tenha uma opinião clara – ou pró Leonard até ao limite da convulsão espasmódica individual ano após ano, ou “indiferente” a Leonard, onde se pensa, OK, até tem umas letras porreiras e tal mas esta merda já se encontra “fora” e é completamente deprimente; ou a admiração quase póstuma transmitida pelos pais ou amigos muito mais velhos.
Foi-me apresentado aos dezoito, no meio de charros, claro, e também claro, por alguém a quem lhe tinha sido apresentado pelos primeiros e dedicados amantes do Leonard, como um dos seus ícones. Nunca o consegui adoptar. Não consigo sentir a perdida paixão que pessoas igualmente póstumas a ele sentem. É para mim, apenas um bom letrista; as músicas dele são a coisa mais ofensivamente fácil de tocar. Não me toca a não ser, claro, como qualquer bom performancer, mas nesse aspecto a minha admiração por ele é igual à que sinto pela Madonna.
Gostaria de saber um novo feed-back sobre a “nova” audiência: creio que nela se encontrariam sobretudo as mesmas pessoas que em 85 (mas muito mais velhas, embora ainda servindo-se dele para aproveitarem o seu quase último momento de revivalismo do passado, coisa típica dos portugas)+ as novas pessoas que o adoptaram ilegitimamente (e que choram baba e ranho por aquilo que não fizeram ao ouvi-lo pois só tinham dez anos)+ aquelas que o vão ver pois é a última oportunidade de ver o Leonard antes que morra ainda que não saibam nada + a geração X que se livrou de preconceitos e modas e que só quer é ver um bom concerto.
sophia
como é que se edita esta coisa?
faltou-me acrescentar o sorriso na última frase :-)
desculpem.
sophia
"se tivesse os 14 de que falavas no sábado"
Eram 14 todos muito resguardados, super-protegidos e na província. Temos todos a revolução dentro de nós, mas nem todos a deixamos sair, mesmo que sejam de religião os motivos. ;)
O que é adoptar ilegitimamente o Cohen?...
"Gostar" de ficar deprimida ao ouvir o Chelsea Hotel, aos dezoito, sem nunca ter sentido as "dores da geração" Janis Joplin (sem sequer saber, na altura, o que representou tal hotel). Usurpar o significado e dor transmitida nessa canção, por falta, inveja do passado que não se viveu e pelo marasmo, sem problemas de maior, que na minha juventude se viveu e que também adoptou ilegitimamente outros como os Doors, por exemplo. Adopção de ícones já estabelecidos anos atrás por ausência temporal de ícones que servissem o marasmo da época (pudera!). Mesmo os Nirvana já vieram no fim da linha...
Faço parte de uma das pessoas que o(s) adoptou ilegitimamente. :-)
sophia
Ena!... isto conheceu desenvolvimentos...
Só uma coisinha: 95% da pop (e subúrbios) são "a coisa mais ofensivamente fácil de tocar". Não é por aí.
Eu não sou das pessoas que acha que tudo é legítimo só porque se quer que seja, mas nisto dos amores tenho dificuldade em deixar-me ir para esses campos, também porque nos podemos apaixonar sem conhecer (ou dar importância) o significado e a "idade" do objecto do sentimento. Com o Cohen, por exemplo, foi assim. Mas, se calhar, também usurpo (ou usurpei) e nem tenho noção e só gosto de acreditar que as coisas não me chegam dessa forma. :)
Sem dúvida. Também nunca tinha genuinamente pensado sobre isto até ter lido a frase que mencionei previamente- "clube de amigos de Alex" (associação para-sindical de profissionais autoflagelantes da desilusão geracional)" (que aliás, é uma frase deveras excelente na medida em que diz muito com um par de palavras)- que no mínimo me deu dados históricos sobre o fenómeno cohen no nosso país e de como ele continua a existir e perdurar ao longo das décadas, embora, creio, com significados distintos entre cada admirador.
Poderá ter transparecido a imagem de crítica ao cohen, mas muito pelo contrário: alguém que todos conhecem e de que todos mantêm um posição sobre o mesmo, só pode ser uma pessoa muitíssimo importante.
O resto é inveja pura e dura pelo facto de ele me ter chegado demasiado tarde porque era demasiado nova na "sua altura". :-)
O ofensivamente simples veio pelo facto de ter aprendido a tocar guitarra com as músicas dele. :-)
sophia
Sem dúvida. Também nunca tinha genuinamente pensado sobre isto até ter lido a frase que mencionei previamente- "clube de amigos de Alex" (associação para-sindical de profissionais autoflagelantes da desilusão geracional)" (que aliás, é uma frase deveras excelente na medida em que diz muito com um par de palavras)- que no mínimo me deu dados históricos sobre o fenómeno cohen no nosso país e de como ele continua a existir e perdurar ao longo das décadas, embora, creio, com significados distintos entre cada admirador.
Poderá ter transparecido a imagem de crítica ao cohen, mas muito pelo contrário: alguém que todos conhecem e de que todos mantêm um posição sobre o mesmo, só pode ser uma pessoa muitíssimo importante.
O resto é inveja pura e dura pelo facto de ele me ter chegado demasiado tarde porque era demasiado nova na "sua altura". :-)
O ofensivamente simples veio pelo facto de ter aprendido a tocar guitarra com as músicas dele. :-)
sophia
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