02 May 2008

PERCURSO ARMADILHADO



Portishead - Third

“Não me quero armar em polícia e pôr-me a dizer às pessoas como devem escutar a nossa música. Mas a forma como Dummy acabou sendo absorvido pelo ‘mainstream’ foi muito peculiar. A ideia de que teve o destino de banda sonora para ‘dinner-parties’ significa que o que era a essência desse álbum não foi, realmente, compreendida. E isso não nos pareceu uma coisa muito simpática”, declarou Geoff Barrow ao número de Maio da “Uncut”. Não será a explicação exaustiva de por que motivo, desde há dez anos, não havia notícias do trio que, com os Massive Attack, Tricky ou Alpha, contribuiu para colocar no superpovoado mapa das “scenes” (reais ou imaginárias) o nome da cidade de Bristol e ofereceu os proverbiais quinze minutos de fama ao jornalista britânico da “Mixmag”, Andy Pemberton, responsável por cunhar a expressão “trip-hop”, mas terá tido, sem dúvida o seu peso.



Em três álbuns – Dummy (1994), Portishead (1997) e Roseland NYC Live (1998) –, os Portishead, no perímetro da cultura “dance” que antecessores como os Coldcut, The Wild Bunch ou DJ Shadow haviam alcatifado a partir das marcas do dub, do acid jazz e da electrónica, formularam uma variante moderna da “torch song” num registo “neo-noir”, aparentemente talhado por medida para antros nocturnos lynchianos mas, afinal, frivolamente consumido como muzaque para eventos sociais BCBG. Acrescente-se a isso o facto de Beth Gibbons, Adrian Utley e Geoff Barrow serem o género de músicos que, com o esboço de uma canção nos braços, fazem sempre questão de perguntar “Muito bem, temo-la aqui, mas onde é que ela vive, que atmosfera habita?” e (com mais ou menos tumultos pessoais de permeio) a justificação para a longa ausência estará encontrada.



Third, então, uma década mais tarde, não radicalizará as coisas ao ponto de converter o suposto “easy listening” em “extremely difficult listening” mas não facilita, de certeza, a tarefa a quem contasse com novo volume de melancolia em estojo de veludo: as arestas brutalizaram-se consideravelmente, as coordenadas de referência situam-se, inesperadamente, entre as trevas do Tricky mais apocalíptico, a gélida arquitectura dos Joy Division ou a rítmica robótica dos Kraftwerk, o percurso de cada tema descobre-se armadilhado de alçapões sonoros, falsos indícios e inesperadas mudanças de rumo e, no lugar do esteticizado “mal de vivre”, planta sementes de pânico e sobressalto que, uma a uma, germinam em cada sucessiva audição. Não devolverá, talvez, aos Portishead a notoriedade que já tiveram mas resistirá, seguramente, bem melhor à erosão.

(2008)

2 comments:

Anonymous said...

«as arestas brutalizaram-se consideravelmente(...)Não devolverá, talvez, aos Portishead a notoriedade que já tiveram mas resistirá, seguramente, bem melhor à erosão.»

A melancolia de «Dummy» não me parece assim tanto em estojo de veludo como diz e as arestas de Strangers, Wandering star, Numb, Pedestal e Biscuit percorrem caminhos razoavelmente tortuosos e não as considero de acessibilidade imediata. Não acredito que Third resista melhor ao tempo. Agora se o disco de estreia serviu para tudo e mais alguma coisa, azar para quem o fez. Losing my religion dos R.E.M. entrou milhões de vezes pelos nossos ouvidos (bem para lá do enjoo) e continua a ser uma grande canção. E depois, Beth Gibbons não tem em «Third« aquela voz de quem se está a despedir do mundo e que foi o verdadeiro golpe de asa que fez de «Dummy» um clássico obrigatório. Mas daqui por uns duzentos anos veremos quem tem razão...

João Lisboa said...

"Agora se o disco de estreia serviu para tudo e mais alguma coisa, azar para quem o fez"

É exactamente isso que o Geoff Barrow diz.

Claro que o "Dummy" é um grande disco. E também não foi, de certeza, porque todos os Sinatras e Jobins e Julie Londons da vida foram convertidos em música-de-papel-de-parede que isso os diminuiu. Aliás, há uma década e picos, a reavaliação do ez-listening (com todo o glorioso lixo kitsch incluído) serviu para demonstrar que, por entre a decoração de interiores sonora, havia muita pérola ignorada.

Aqui a questão é a inversa: o artista (hesitei em pôr aspas...) a quem as tripas se reviram por ver os seus sangue, suor e lágrimas a acompanhar desfiles de moda por oposição ao "frívolo" (aqui pus mesmo as aspas) comerciante sonoro que se descobre pioneiro "vanguardista" e "experimental".

Nada de novo debaixo do sol.