06 February 2008

PARCEIRAS PERFEITAS



Cat Power - Jukebox




Dawn Landes - Fireproof

Cat Power e Dawn Landes. À primeira vista, poderia imaginar-se que se trata apenas de uma “arrumação” confortavelmente preguiçosa que obedeceria exclusivamente ao critério de reunir duas “singer-songwriters” femininas por uma única questão de género. O que, na verdade, até seria bastante defensável: mesmo sem demasiados rigores estatísticos, não é difícil reparar como o contingente feminino em actividade na pop de melhor linhagem tem, hoje, um peso e importância incomparavelmente superiores ao que, não há tanto tempo quanto isso, acontecia. A discriminação positiva – ainda que, no caso, crescentemente inútil e desnecessária – estaria, então, razoavelmente justificada. O essencial, porém, deve ser procurado na condição de “singer-songwriter” que, em cada uma, de modo inteiramente distinto, repensa e reavalia a forma-canção, o seu posicionamento e os diversos modos de lidar com ela.



Cat Power, por exemplo, havia já entrado na lenda como a persona trágica e (em palco) imprevisível de Chan Marshall. Os álbuns revelavam uma valiosa escritora de canções mas eram os seus concertos que alimentavam o mito: poderiam chegar ou não ao fim, transformar-se em violentas sessões de psicodrama público, perder-se em patéticas divagações alcoólicas com residual componente musical ou – também sucedia – ser momentos de intimidade única entre ela e o seu público. A bisbilhotice “social-cor-de-rosa” (ou de tons mais negros…) a que o jornalismo musical não é imune tanto vampirizou os “comos”, “ondes” e “porquês” dessa exposição do combate com os seus demónios interiores como se afadiga agora na enumeração dos passos da via dolorosa que – aparentemente – a terão conduzido à redenção. Afinal, o que importa dizer a propósito da publicação de Jukebox (segundo disco de versões, oito anos depois de The Covers Record) é que, qualquer que seja a relação entre a suposta pacificação existencial e a obra, este é, muito provavelmente, o melhor álbum de Chan Marshall/intérprete (e, apenas pontualmente, compositora).



Onde, na realidade, é obrigatório reparar que a intérprete, em considerável medida, assume quase o estatuto de co-autora, de tal modo se apropria das canções e, muito pouco cerimoniosamente, as revolve e transforma. Exagerando (mas não muito): Frank Sinatra foi apagado da História, “New York” é, de agora em diante, uma canção de Cat Power. Precisamente o mesmo tratamento a que (ao lado de Jim White, dos Dirty Three, e de Judah Bauer, da Jon Spencer Blues Explosion) submete as restantes dezasseis – as outras onze do álbum principal acrescidas de cinco bónus –, herdadas de nomes tão veneráveis como Billie Holiday, Janis Joplin, Joni Mitchell, James Brown, Nick Cave, Moby Grape, Patsy Cline, Hank Williams ou Bob Dylan. E é exactamente nas duas faixas que giram em torno de Dylan (a versão de “I Believe In You” e o original de Marshall, “Song To Bobby”) que o mais surpreendente jogo de máscaras ocorre: enquanto “I Believe In You”, literalmente, muda de mãos, escutamos “Song To Bobby” – “Backstage pass in my hand, giving you my heart was my plan, can I finally tell you to be my man?” – no que só poderá ser a voz de Chan Dylan ou Bob Marshall.



No site da Amazon, quando se procura Fireproof, de Dawn Landes, aconselham-nos a comprá-lo, na qualidade de “perfect partner”, em conjunto com Jukebox. E não custa muito admitir que, independentemente da estratégia de marketing, existe, sem dúvida, alguma lógica de familiaridade no emparelhamento: apadrinhada por Suzanne Vega e Andrew Bird, técnica de som de Philip Glass, Joseph Arthur e Ryan Adams, Dawn Landes pratica o tipo de canção contemporânea que viaja agilmente entre tradição country-folk e aquele “modernismo” sonoro patenteado por Tom Waits desde Swordfishtrombones. Gravado num antigo quartel de bombeiros de Brooklyn convertido em estúdio, articula instrumentação tradicional com electrónica, optigons, glockenspiel, melodias memoráveis e uma escrita poeticamente enxuta que alinha frases como “we are like kids in a play set in the Victorian age, we only know what to say because we practiced at home” com a maior naturalidade. Traz à memória Laura Veirs mas, sobretudo, 99.9 Farenheit Degrees, de Suzanne Vega, e isso só pode ser uma coisa muito boa. (2008)

8 comments:

Anonymous said...

Cat Power foi um bom regresso, depois do último álbum feito (pareceu-me)a meio gás. Algumas canções muito boas tropeçavam frequentemente noutras sem garra nem chama. Este, não. É, efectivamente, um óptimo disco de versões e que serve como paradigma do que deve ser uma «verdadeira» versão. Apropriação total da matéria-prima até que o intérprete se torne autor de corpo inteiro. O disco de Dawn Landes ainda não tive oportunidade de ouvir, mas, a acreditar no seu texto, promete. E uma obra que faz lembrar 99.9 Farenheit Degrees (que, por acaso, também merecia ter entrado na lista dos 100 álbuns do séc.XX...) merece ser escutada, obviamente.

Anonymous said...

"Frank Sinatra foi apagado da História, “New York” é, de agora em diante, uma canção de Cat Power."

Isto é uma heresia. Já muitos foram lançados à fogueira por menos que isto!

João Lisboa said...

"99.9 Farenheit Degrees (que, por acaso, também merecia ter entrado na lista dos 100 álbuns do séc.XX..."

O quê? Esse tb ficou de fora?!!!... Realmente, 100 não é nada....

"Já muitos foram lançados à fogueira por menos que isto!"

... aaah... the Spanish Inquisition!

menina alice said...

"Frank Sinatra foi apagado da História, “New York” é, de agora em diante, uma canção de Cat Power."

Credo! Realmente é verdade. Isso é muito herege. Eu ainda não ouvi, mas não gosto e tenho certeza que deve ser mentira. Foste hipnotizado?

Se quiseres podes despublicar este post, não há problema. :D

João Lisboa said...

"Foste hipnotizado?"

You know how it is... cat power!

"Se quiseres podes despublicar este post, não há problema"

Abaixo o revisionismo histórico!

Anonymous said...

Julgo que o pretendido na frase que está a gerar tanta polémica «Frank Sinatra foi apagado da História, “New York” é, de agora em diante, uma canção de Cat Power» é, mais do que diminuir a importância do Sinatra, valorizar a excelência da versão de Cat Power que recria a canção de forma tão personalizada que a faz, efectivamente, sua. E, se for essa a ideia que o João Lisboa quis transmitir, posso dizer que não me escandaliza, como até acabo por concordar com ela... Mas, no fundo, que sei eu?

Anonymous said...

Eu estava a brincar :)

Anonymous said...

“…“arrumação” confortavelmente preguiçosa que obedeceria exclusivamente ao critério de reunir duas “singer-songwriters” femininas por uma única questão de género. … o contingente feminino em actividade na pop de melhor linhagem tem, hoje, um peso e importância incomparavelmente superiores ao que, não há tanto tempo quanto isso, acontecia.”
Caro João Lisboa
O contingente feminino não é de hoje. E ainda bem. Vai ter de postar algumas recensões antigas. Do género. Recordo, entre outras:
“A discriminação positiva” – juntava, então 8 mulheres. Ainda não vi nada no tubo de Liz Phair ou de Brenda Kahn. Confesso que nunca lá vou. Espero que o João faça o trabalho. O texto justifica.
Idem aspas para “As três últimas provas” onde Tori Amos, Kristin Hersh e Malka Spigel (quem?) estavam juntinhas e se dizia que iriam relegar a competição masculina para segundo plano.
E, muito mais recentemente (fez-me descobrir o Carla Bozulich) “Mulheres com guitarras – Bozulich e Veirs sim, harvey e Smith asssim-assim”. Aliás, é o texto que falta na entrada da Laura Veirs.
Trabalhinho a fazer.
Grato.
Manuel Carvalho