AINDA DE GARRAS DE FORA
Morrissey - Greatest Hits
A 4 de Dezembro de 2006, nos bastidores da Metro Radio Arena de Newcastle, Morrissey concede uma entrevista de dez minutos ao seu jovem “director de campanha” para a eleição do Britain’s Greatest Living Icon, do “Culture Show” da BBC-2 (em que integrou a “shortlist” juntamente com David Attenborough – o vencedor final – e Paul McCartney). Toda ela vale a pena ser vista no YouTube mas o que realmente agora importa encontra-se logo nos primeiros dois segundos: irradiando felicidade, o entrevistador saúda-o com um “So, Morrissey, it’s good to meet you!” ao que ele, com um franzir de sobrolho verdadeiramente intrigado, responde “Why?...”.
Poderá ser uma encenação de falsa modéstia estudadamente cultivada mas, ainda que o seja, vale a pena recordar que talvez nem Leonard Cohen, em “Dress Rehearsal Rag”, terá sido capaz de escrever algo de tão cruelmente auto-humilhante como Morrissey, no texto de “Let Me Kiss You”: “Close your eyes and think of someone you physically admire and let me kiss you, then you open your eyes and you see someone that you physically despise, but my heart is open, my heart is open to you”. De facto, dificilmente se descobrirá alguém que, como Morrissey, generosa e frequentemente, consiga, em simultâneo, aspergir tanta bílis sobre si mesmo e o universo à volta e costurar isso sob a forma de canções pop de corte clássico.
É verdade que, desde a dissolução dos Smiths, raramente recuperou aquela imponderável espuma sonora na qual Johnny Marr envolvia o seu literato e requintado arsénico verbal. Mas, se o título deste duplo Greatest Hits (catorze faixas de estúdio mais oito de um concerto no Hollywood Bowl) deve ser levado à letra – todas as canções, maioritariamente extraídas dos últimos álbuns, residiram no top 20 de singles britânico e nove delas treparam até aos dez lugares cimeiros –, é justo reconhecer que, mesmo trocando continuamente de parceiro de escrita (Stephen Street, Mark Nevin, Boz Boorer, Alain Whyte), sem demasiados passos em falso terrivelmente comprometedores, a projecção pública de Morrissey, a solo, excedeu já em muito tudo aquilo que, para além da lenda, alguma vez os Smiths atingiram.
E é aqui que dois pontos não poderão deixar de ser sublinhados: tanto Street como Nevin, Boorer ou Whyte (com inevitáveis diferenças menores) acabaram por operar mais como “tradutores” da mesma “morrisseyness” que Marr havia identificado do que na qualidade de proponentes de hipóteses estéticas alternativas; nem por um só instante ao Morrissey que, logo no início do seu percurso individual, no apropriadamente intitulado Viva Hate (1988), dedicara a Margaret Thatcher as gentis palavras “the kind people have a wonderful dream, Margaret on the guillotine”, ocorreu a ideia de encolher as garras.
Talvez inevitavelmente, de forma desordenada, contraditória e ambígua: acusado de racismo, xenofobia e simpatia por políticas nacionalistas de extrema-direita, respondeu. em “Irish Blood, English Heart” (de You Are The Quarry, 2004), “I’ve been dreaming of a time when to be English is not to be baneful, to be standing by the flag not feeling shameful, racist or partial”; apanhado de surpresa, num palco em Dublin, pela notícia da morte de Ronald Reagan, em 5 de Junho de 2004, “bigmouth strikes again” e confessa que teria preferido que fosse George W. Bush o falecido (há semanas, deu a sua bênção a Barack Obama e, após ter alfinetado “Billary” Clinton, disparou “The World Is Full Of Crashing Bores”), acusando, meses mais tarde, os serviços de imigração norte-americanos de se comportarem com “a amabilidade das SS hitlerianas”.
Porque, no fundo, o conflito da personagem a quem o juiz que decidiu sobre a querela autoral que o opôs ao ex-Smiths, Mike Joyce, classificou como “desleal, truculento e de pouca confiança” começa dentro de si mesma (“I bear more grudges than lonely high court judges”), derrama-se sobre o mundo (“This is the coastal town that they forgot to close down, Armageddon, come Armageddon, come Armageddon, come!”) e nunca saberemos ao certo onde começa uma e acaba o outro. (2008)