26 September 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XV)


"Vi Monti Rock III, em 1969, no Sunset Strip, num sítio chamado Filthy McNasty's, onde estavam seis pessoas na sala. Arrastava-se numa versão amarga e distraída de 'Tennessee Waltz' quando, subitamente, interrompeu a banda cujos elementos vestiam todos fatos cor-de-rosa, a condizer. A sala guinchou com o feedback, no momento em que ele atirou com o copo contra a parede e golpeou o amplificador com o suporte do microfone, berrando para os seis engravatados do público que eles não passavam de vampiros. Ria-se nervosamente e, enquanto transpirava debaixo do foco luminoso, entregou-se a uma confissão puramente psicótica que se assemelhava ao cruzamento entre uma execução e um striptease. Num estilo algures entre chulo e pregador, contou histórias de quando tinha sido cabeleireiro em Porto Rico e sobre a sua ambição de vir a ser alguém em Hollywood. Depois, recompôs-se e cantou 'I Who Have Nothing' a cappela. Eu estava lá e compreendi, nesse mesmo momento, que tinha de entrar para o show business o mais rapidamente possível.

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"Foi na véspera de Natal de 1975, em Hollywood, na Califórnia. Estava de visita a uns amigos e a fazer as libações da quadra festiva quando chegámos todos à conclusão que a aparelhagem do vizinho estava alta de mais — os Mahogany Rush no volume máximo. Alimentado de coragem líquida, ofereci-me para o confronto, cambaleei por dois lanços de escadas acima e bati à porta com um pedaço de lenha. Um gigante abriu a porta. Tinha dois metros e meio de altura e uma cabeça do tamanho da de um cavalo. Disse qualquer coisa em alemão, levantou-me pelo pescoço como um animal empalhado e tentou atirar-me da varanda abaixo. No momento em que a balaustrada cedeu, agarrei-me a ele e caímos os dois, da altura de dois andares, sobre uma quantidade enorme de bicicletas. Tinha-me pegado pelo cinto como se eu fosse uma mala e preparava-se para me enfiar a cara numa torneira quando me desatei a rir. E, quando dei por isso, ele estava a rir-se comigo. Ali estávamos nós, eu e o gigante, a rebolar no chão às gargalhadas, com os Mahogany Rush em altos berros e um Pai Natal e uma rena com luzes eléctricas a acender e a apagar, a gozarem connosco. Foi o meu primeiro momento de heavy-metal a sério.

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"Quando era rapaz, costumava mergulhar à procura de pérolas nas águas quentes da costa de Guaymas e San Felipe onde, um dia, descobri um navio afundado perto de San Blas. Penetrei nele através de corredores sombrios, agarrando-me aos corrimãos, a caminho da cozinha e da sala de jantar. Forcei uma escotilha encravada, espreitei para dentro e vi cem esqueletos — todos sentados à mesa e de smoking — que, de repente, se levantaram, ergueram os braços e começaram a acenar-me. Os corpos estavam em decomposição mas os smokings eram perfeitos.

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"Em Hermosillo, uma prostituta anã subiu para o meu banco no bar, sentou-se-me ao colo, pediu um Double Suicide para beber e contou-me como tinha assassinado o chulo dela, a sangue frio, no Bali-Hai de Tijuana. Isso tinha-se passado há trinta anos, desde então tornara-se cristã 'born again' e queria que eu a ajudasse a juntar dinheiro para ir a Fátima.

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"Quando tinha dez anos, fui a uma feira popular em San Vicente. Vi uma mulher que tinha uma cauda de trinta e cinco centímetros coberta de pelos. Era mesmo verdadeira. Deixou-me mexer-lhe e sorriu-me com os seus dentes podres. Um acordeão tocava polcas ranhosas de maneira a pôr-nos os ouvidos em sangue e, durante toda a noite, só comi churros até que a feira não fosse senão um borrão luminoso. Com a boca cheia de açúcar, a cabeça a andar à roda e os ouvidos a zumbir, regressámos ao rancho num atrelado carregado com trinta putos, escuros como breu e todos a gritar em castelhano. No dia seguinte, estava tão enjoado que me puseram numa das casas exteriores, longe do edifício principal. Tinha a certeza que me tinham largado ali para morrer, por isso aceitei o facto com uma amável tranquilidade. Todos os dias uma miudinha mexicana me ia visitar e eu lambia o Kool Aid da mão dela. O médico, esse, era parecido com o Charles Boyer e punha-se de pé junto a mim, com uma seringa gigante na mão, a falar em português e a esguichar o sôro amarelo para o ar.

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"Uma loja de donuts aberta toda a noite, na esquina de Ninth e Hennepin, em Minneapolis. É já tarde e o Chuck E. Weiss e eu estamos a beber café ao balcão quando somos apanhados no meio de uma guerra entre dois chulos de treze anos. Um deles está na rua aos tiros e o outro corre para dentro do café, mergulha desarmado para trás do balcão e grita:'Leon, és um homem morto!'. As balas acertam no fogão, numa nota de dólar encaixilhada e num cão de porcelana. Chuck e eu atiramo-nos ao chão no momento em que o jukebox começa a tocar 'Our Day Will Come' da Dinah Washington. Todas as balas que lhe acertam mudam a selecção do jukebox e cada canção é mais comovente que a anterior.

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1993

(2007)

4 comments:

Anonymous said...

F***-se, já chega de Tom Waits. O homem nem é assim tão bom e de nem tem vocação para vaca sagrada. Muda o disco ó Lisboa!

João Lisboa said...

1) Não chega;

2) O homem é muito, muito bom;

3) Não sou hindu;

4) Ainda nem a meio vai.

João Lisboa said...

Ah, esqueci-me: pode escrever "foda-se" à vontade, sem ***.

Daniel said...

Um anónimo faz sempre muito barulho quando entra em qualquer lado mas nós somos mais. Era o que faltava parar agora. Julgo até que o Tom Waits não se importaria nada de ver assim escrita a sua biografia, com histórias avulsas em pequenos bilhetes que depois seriam agrafados no final. Seria bem melhor do que os livros editados, até agora, com esse fim (isto, infelizmente, não é grande elogio).