30 July 2007

O OUTRO GAJO NÃO FOI



Gogol Bordello - Super Taranta!

Kafka Whorehouse até não era nada mau. Mas, eufonicamente, não ia lá e, falhava bastante o alvo conceptual. Hütz & The Béla Bartóks também tinha potencial mas – como o seu criador rapidamente reconheceu – “ninguém sabe quem o caralho foi Béla Bartók". Gogol Bordello, sim, era tiro e queda: Nikolai Gogol (cultor da caricatura grotesca e absurda, responsável pela infiltração da literatura ucraniana no Ocidente) associado a uma certa, chamemos-lhe assim, “joie de vivre” (que, diga-se, Gogol nunca conheceu), era a perfeitíssima libação do vodka após a suave digestão do “borscht”. Hedonistamente excessivo e culturalmente exacto, na saga individual de um expatriado ucraniano de meia-origem cigana e dieta musical punk/no-wave – Eugene Hütz –, transplantado de Kiev para Nova Iorque, em 1989, após atribulada diáspora, por efeito-borboleta da catástrofe de Chernobyl. E o género de nome de banda que, sob as condições ideais de temperatura e pressão estéticas (leia-se: inventar o “gypsy-punk”), só pode ir muito longe. “Gypsy-punk”?



Isso mesmo: a proverbial energia dos três acordes (na verdade, são mais, às vezes, com Schubert pelo meio e tudo, mas parecem só três), montanhas-russas de violino e acordeão balcânicos, meia dúzia de vírus klezmer, tarantelas pagãs, morriconismos e dub crioulo, uma fixação simultânea em Iggy Pop e Charlie Chaplin, a matriz cigana à laia de esponja cultural nómada, a noção de concerto como um sísmico e mítico Moulin Rouge permanente, e a antiga ideia da “intervenção política” enquanto guia de viagem. Inevitavelmente, de tão festivamente contracorrente que era, o Lower East Side pegou fogo e uma das faúlhas perdidas convenceu Madonna a fazer subir Eugene e o violinista Sergey Ryabtzev (o ucraniano e um dos dois russos da trupe de israelitas, americanos, etíopes, sino-escoceses e tai-americanos) ao palco do Live Earth, na qualidade de seus acólitos. Nada de confusões, porém: nem Eugene Hütz é um Borat para intelectuais “alternativos” (e Borat/Baron Cohen até tem os neurónios bem lubrificados) nem os Gogol Bordello são apenas uma equação Pogues+Clash+Kusturica=?.



Aqui – do primeiro Voi-La Intruder (1999) ao magnífico Gypsy Punks/Underdog World Strike (2005) ou ao recentíssimo Super Taranta! – há óptima música ebriamente dionisíaca, leituras q.b. (de Diógenes a Foucault e Bertrand Russell), pedigree rock’n’roll na produção (Jim Sclavunos, Steve Albini e Victor Van Vugt) e, com a assinatura de Hütz, uma ou duas reflexões que vale a pena ler: “Para muitos de nós, a música é uma parte insubstituível da vida. Muitas vezes, ouvimos, durante anos, algumas pessoas falar de concertos que nunca lhes sairão da memória. Na mitologia cigana, tanto se diz que eles foram memoráveis porque o Demónio habitou aquela sala ou porque quem lá esteve foi o Outro Gajo" (“gajo”: termo etimologicamente cigano). Mas, acrescenta logo ele, “let’s not get too anthropological on your ass”. Com os Gogol Bordello, o Outro Gajo não foi de certeza. (2007)

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