06 June 2007

BJÖRK: REVISÕES - I



Dancer In The Dark (real. Lars Von Trier+mús. Björk)

Dancer In The Dark — na sequência de filmes como Moulin Rouge — não só reanima o género desde há muito praticamente extinto do "musical" como inaugura praticamente o sub-género do musical-melodramático-neo-realista onde a poética do absurdo característica do "musical" simula articular-se com um argumento de uma crueza brutal.
O arranhar do bico de grafite de um lápis desenhando as personagens de um julgamento sobre uma folha de papel. O insuportável e repetitivo ritmo industrial de uma bateria de máquinas em actividade no interior de uma fábrica. O estrondo das rodas de um comboio sobre os carris.



O estalido da agulha de um gira discos encravada numa espira de vinil. É sempre "naturalmente", a partir da mais concreta materialidade sonora, que a pobre realidade da emigrante checa Selma/Björk desliza, insensivelmente, através da música, para o suposto mundo de sonho dos "musicais" de Hollywood na eventual tradução do dos países da Europa "de Leste" que ela conhece. E é por aí mesmo que Dancer In The Dark deixa de ser um "musical" de acordo com as regras sobre que, inevitavelmente, Jeff irá falar com Selma — aquelas que estipulam que nunca é necessário nenhum motivo plausível para que, inopinadamente, os personagens se sintam obrigados a lançarem-se "into song and dance" —, para se transfigurar numa imensa alegoria invertida onde as razões sobram para que isso aconteça. A realidade material do mundo (ainda que não exista outra) é intolerável, o "deus-infinitamente-justo" esqueceu-se de existir, por isso, não resta senão a fuga para um outro universo onde até a condenação aparenta ser redentora e as mais humilhantes marcas da inexplicável injustiça (a cegueira hereditária, o trabalho fabril, as circunstâncias acusatórias de um crime que não foi cometido e que será "provado" em tribunal) servem como pretextos para o acesso a uma realidade menos aterradora.



Os "musicais" nunca precisaram desses pretextos. No cristianíssimo Dancer In The Dark (e essa paradoxal faceta cristã de sacrifício e martírio perante um deus moral obviamente ausente é o lado pior de que Lars Von Trier nunca é capaz de abdicar) os pretextos são tudo e tudo justificam. Selma só canta e dança num "mundo melhor" de ficção porque o mundo real é inaceitável. E, ao fazê-lo, diz, com todas as letras, a verdade que os "musicais" sempre dissimularam. Os "musicais" nunca foram "realistas" e, muito menos, "neo-realistas". Dancer In The Dark é-o. Por isso, a despeito das aparências, é tudo menos um filme "musical" mas sim uma parábola trágica que utiliza a música para falar de outras coisas infinitamente mais concretas.
As referências, explícitas ou implícitas, à tradição dos "musicais" podem ser mais ou menos importantes — e só isso explicará o evidente "miscasting" incompreensivelmente proletário da Catherine Deneuve dos Parapluies de Cherbourg ou a inclusão de Joel Grey/Oldric Novy recuperado de Cabaret — mas esta, em rigor, nem sequer é a "reelaboração profundamente interiorizada de um dos géneros cinematográficos mais exibicionistas" de que Gavin Martin falava na "Film Comment".



Será também isso, mas não é essencialmente disso que se trata. Todas as parábolas fazem uso da realidade para a transcender e tentar explicar. A matéria, a matriz cinematográfica, de Dancer In The Dark são os "musicais" como poderia ter sido qualquer outra. A inclusão cirurgicamente perfeita das canções (e o desempenho enquanto actriz) de Björk como toda a restante estrutura do filme poderá ser um brilhante, virtuoso e repugnante exercício de manipulação de emoções mas, de Einsenstein a Leni Riefenstahl ou Vincent Minelli, o que existiu em todo o grande cinema clássico — musical ou não — e no outro (desde o momento em que aceitamos entrar para uma sala escura e acreditar na ilusão das imagens em movimento) que não fosse isso mesmo? Pelo menos, aqui, o intolerável peso do real determina o jogo dessas emoções e, naquele indefinível percurso entre a vida material concreta e a música (a velha "musique concrète" teorizada e praticada por Pierre Schaeffer a partir dos vestígios da qual emergem as clássicas canções de Björk), o que ressalta é a incompatibilidade irredutível entre o inferno do mundo e o que, sabe-se lá porquê, se imagina que ele poderia ser a partir do que, desgraçadamente, é.



Concebido de acordo com o território primordial da família, amputada mas, ainda assim, afectivamente sufocante, segundo uma perversa fantasia sobre Música No Coração (que, como subtexto, pontua, narrativa e musicalmente, toda a história ) e uma inversão de prioridades exercida sobre os procedimentos canónicos do "musical" — é o irremediável constrangimento da vida nula e não as próprias regras dessa ficção cinematográfica que obrigam Selma a refugiar-se no sonho —, Dancer In The Dark é a primeira obra-prima do "musical" decididamente contra todas as regras dos "musicals". Björk canta e dança, segundo ela, porque Von Trier redigiu todo o argumento a partir da sugestão do videoclip de "It's Oh So Quiet". Mas se, pela primeira vez se viu obrigada a compôr música para a ficção visual de um outro e não o contrário (como aconteceu com os clips de Spike Jonze ou Michel Gondry), ela foi integralmente capaz, como compositora e actriz, de interiorizar essa inversão. Nem o filme é um "extended clip" nem as canções estão lá por que Björk é a actriz principal. Elas estão lá apenas porque a infeliz realidade de Selma/Björk não teve outra saída senão transformar-se em música. Porque um lápis arranhou o papel, as máquinas trabalharam, um comboio rodou e, quando não devia, uma agulha de gira-discos ficou presa numa arcaica rodela de vinil e, para sempre, a estrangulou. (2000)

4 comments:

menina alice said...

Eu nem saberia onde começar a comentar este post...

Eu said...

Dancer in the Dark é definitivamente um dos filmes da minha vida. E a Björk tem um carisma único. Genial.

João Lisboa said...

Porquê, oh porquê, menina-alice?...

menina alice said...

Publicidade enganosa. :P