17 May 2007

A MÚSICA NO FEMININO



Patti Smith - Twelve




Laura Veirs - Saltbreakers




Mary Timony Band - The Shapes We Make




Hanne Hukkelberg - Rykestrasse 68

A música popular nunca foi um território de absoluta hegemonia masculina. Mas, durante a maior parte do século XX, das divas da “torch song” e do jazz vocal às “starlets” e “pin-ups” pop, o papel reservado às mulheres nunca andou demasiado longe dos estereótipos generalizados através de cuja lente o mundo se encarregou de identificar o “perfil feminino” e de lhe atribuir um lugar: lolita inocente e/ou devassa, deusa intangível, trágica à beira do abismo, sedutora perversa, “sex-toy” descerebrado ou mãe-de-família-como-deve-ser (não esquecendo, na era dos anos 60 em diante, a folclórica silhueta adjacente da “groupie”), para todas as categorias se perfilou uma extensa lista de candidatas, voluntária ou involuntariamente dispostas a ocupar uma vaga. Edith Piaf, Doris Day, Julie London, Marianne Faithfull, Billie Holiday, Bessie Smith, Sandie Shaw, Jane Birkin e um interminável cortejo de outras exemplificam bem vários desses retratos-robot que, embora tenham persistido até hoje apesar das diversas vagas de feminismo e pós-feminismo (uma leitura em diagonal das tabelas de vendas mundiais é esclarecedora), sofreram os primeiros abanões a sério com o aparecimento de figuras como Janis Joplin, Yoko Ono ou Grace Slick (Jefferson Airplane), perderam o equilíbrio com a vaga inicial de singer-songwriters da linhagem de Joni Mitchell, Judee Sill ou Sandy Denny e, de Patti Smith às bandas do pós-punk (Slits, Au Pairs, Raincoats, Delta 5) ou ao motim “riot grrrls” do princípio dos anos 90, redefiniram de modo inexorável a percepção que temos das diversas formas que pode assumir – seja isso aquilo que for – “o feminino” na música. O que tanto escancarou as portas da edição discográfica a um número de autoras e intérpretes incomparavelmente maior do que antes acontecia como obrigou à aceitação de personagens – Björk, Diamanda Galás, Laurie Anderson, Lydia Lunch – definitivamente pouco dadas a deixar-se enquadrar pelas coordenadas antigamente em vigor.

Talvez seja por isso que incomoda um pouco depararmos com uma das pioneiras da insureição – Patti Smith – em pleno momento de capitulação perante as regras da indústria: o pretexto alegado é uma homenagem transgeracional a todos os ícones e heróis de que se constituiu a sua memória pop/rock (Jimi Hendrix, Kurt Cobain, George Harrison, Grace Slick, Doors, Rolling Stones, Allman Brothers, Bob Dylan, Paul Simon, Neil Young, Stevie Wonder e (?) Tears For Fears) mas é bastante difícil não entender Twelve como mais uma das manobras actualmente em curso no subsector do “álbum de versões” (Dylanesque, de Brian Ferry, A Tribute To Joni Mitchell, Do It Again: A Tribute To Pet Sounds ou o anunciado CD de foguetório em torno do 40º aniversário de Sgt. Peppers). Coisa que, em si mesma, nem seria reprovável se as várias releituras que Patti Smith realiza acrescentassem um ponto de vista diferente aos originais ou permitissem reescutá-los sob um novo ângulo. A verdade é que isso apenas ocorre com “Smells Like Teen Spirit”, dos Nirvana (convertido em desvairado “freak-out” de bluegrass), e, em muito menor grau, “Are You Experienced?”, de Hendrix.



As sobrantes dez são resignados exercícios de uma “covers band” competente (os históricos Lenny Kaye, Jay Dee Daugherty e Tony Shanahan e participações avulsas de Tom Verlaine, Flea e Sam Shepard... em banjo), isto é, justamente aquilo que todos eles menos precisavam e mereciam como adenda ao currículo.

O testemunho, porém, já foi passado e encontra-se em óptimas mãos. As de Laura Veirs, por exemplo, que, após Carbon Glacier e Year Of Meteors, em Saltbreakers retoma o fio ao seu “songwriting” literário e de um “naturalismo mágico” que, recombinando materiais punk e folk com as contribuições extaterritoriais de Bill Frisell e Eyvind Kang e a arte-final da produção de Tucker Martine (cujo instinto rítmico ajuda a dinamizar e vertebrar o corpo das canções), desta vez, recorre a AS Byatt (o romance Possession) e a José Saramago (Ensaio Sobre A Cegueira) enquanto combustível e detonadores para um ciclo de temas à volta da ideia de expiação e redenção através da purificação pelas forças elementares (“Drink deep my love, for the water is gasping for your mouth”).



As credenciais de Mary Timony identificam-se, talvez, em linha mais directa com as origens históricas de Patti Smith: veterana das escaramuças “riot-grrrl” na cena punk/hardcore de Washington D.C. enquanto activista, em 1990, das Autoclave, e, a seguir nos Helium, desde 1997, a solo ou com a Mary Timony Band, tratou de deixar poucas dúvidas que, se Laura Veirs é uma folk/punk com duas licenciaturas (Geologia e Línguas Chinesas), a ela ninguém haverá de negar o “pedigree” na “Duke Ellington School of The Arts”, de Washington (guitarra e viola de arco), e mais outra licenciatura (daquelas com toda a documentação em ordem, nada de confusões...) em Literatura Inglesa, pela Universidade de Boston.



A ética e a estética punk bem podem ter vociferado “Learn how to NOT play your instrument!” que Timony, mesmo que o desejasse, na música que pratica, não conseguiria dissimular de onde provém: The Shapes We Make é rock submetido a um formato razoavelmente elástico de canção mas denso, texturado, explosivo e harmónica e timbricamente complexo (tal como os Sonic Youth o continuam a dilatar e distorcer), sem, contudo, pisar o risco proíbido da mórbida obesidade “prog”.

Do lado de cá do Atlântico, entretanto, Rykestrasse 68, segundo álbum da norueguesa Hanne Hukkelberg depois do precioso Little Things (2005), é o segundo capítulo de um luminoso universo musical e poético absolutamente singular:



em cada canção, Hanne praticamente nos convida a observar à lupa o modo pelo qual costura toda a intrincada anatomia sonora de um imponderável organismo (feita de flexíveis fibras de jazz, circuitos nervosos onde se atropelam Bach, os Pixies e estilhaços de electrónica, um sistema circulatório activado pela batida cardíaca de uma máquina de escrever Remington, pelo ronronar de gatos e por uma polifonia de electrodomésticos e “found sounds” urbanos) que voa contra um fundo de banjo, acordeão, violoncelo, violino, celesta, piano, guitarra e flauta e, inadvertidamente, vai registando instantâneos da paisagem sobre a qual se desloca: “Picking dry and crispy paintflakes off a large bricket wall, while I stare out of my window, stare at my neighbours balcony: old bullet holes behind wild botany”. Não deveria ser necessário dizer que, na Rykestrasse de Berlim, não existe o número 68. (2007)

8 comments:

J G said...

A propósito de Patti Smith - Twelve, ando a tentar lembrar-me de um disco de covers de Matilde Santing (penso que é assim que se escreve), e tenho a ideia que li uma crítica do JL no Expresso na altura...

Se me puder ajudar agradeço.

cumprimentos

Anonymous said...

Não sei se é disto que falas mas o primeiro disco da Mathilde Santing é um disco de covers. Não o ouço há uns bons 10 ou 15 anos mas se bem me lembro era um belo disco. Com estranhas versões dos Beach Boys e do Sinatra acompanhas de orgãos estranho e caixas de ritmo maradas (mas isto pode já ser a memória a pregar-me enormes partidas).

Tens com que te entreter aqui:

http://www.mathildesanting.info/2005/home.htm

J G said...

já ajudaste.

o disco é este:
To Others to One

alinhamento:
1. Typical Situation
2. Innercity Blues
3. Right Place
4. Here, There and Everywhere
5. Palace Moon
6. How Deep Is the Ocean?
7. Too Big for Me
8. Where Is My Soul
9. Wonderful Life
10. Don't Try to Tell Me
11. Ready for the War
12. So Cold
13. Protected
14. Dream Till the Morning

editado em 2000

João Lisboa said...

Epá, nem tinha reparado que andavam aqui a conversar nas traseiras do blog... O 1º álbum da MS é um daqueles clássicos tão óptimos quanto bastante ignorados; quem escreveu sobre ele (mas não me recordo se no Expresso), na altura, foi o MEC.
Dos álbuns de "covers" dela, tirando esse, o que gosto mais é o "Texas Girl & Pretty Boy" todo dedicado ao Randy Newman. Que, aliás, o aprovou vivamente.

J G said...

:)

E a critica deste To Others to One foi escrita pelo João Lisboa, certo?

Por acaso não se consegue "recuperar" esse texto?

João Lisboa said...

(engole em seco, assobia para o ar e tenta, sem êxito, mudar de assunto): ... não me lembro... ... ... mas vou ver...

João Lisboa said...

Yup. Fui eu, fui...

Fica na lista de espera... mas também verifiquei que, sobre a MS, no Tubo, reina a maior penúria.

bitsounds said...

vamos poder ouvir o excelente "Rykestrasse 68" por cá, finalmente ....