DOS DEUSES E DOS SAMURAIS
Sérgio Godinho - Ligação Directa
Há falsas aparências que podem iludir muito injustamente. À primeira vista, Ligação Directa será o primeiro álbum de canções originais de Sérgio Godinho desde Lupa, de há seis anos. O que, factualmente, é verdade. Mas se, realmente, se sobrevive mal à míngua de novas canções do autor de Pano Cru, convém não esquecer que, entre teatro, cinema, o êxito de O Irmão Do Meio e diversas outras actividades extra-curriculares, ele não esteve parado durante todo este tempo. Uma parte desses estilhaços aterrou aqui e o resto deverá ser condignamente celebrado.
Mesmo antes de começar a escutar o disco, a primeira coisa em que reparei foi nos títulos das duas primeiras canções: "A Deusa do Amor" e "Às Vezes O Amor". Há alguma razão para esta dupla inicial "de amor"?
Não. Mas a lógica do alinhamento foi musical, não foi de conteúdo. Cada vez mais fazemos "shuffle", baralhamos e voltamos a dar. Não é que se oiça sempre um disco em sequência. Mas, interiormente, tem de fazer um sentido musical e o alinhamento tem, muitas vezes, pormenores técnicos que passam despercebidos. Temos de sentir certas dinâmicas e não me apetece que elas sejam sempre de "vai acima e vai abaixo", tem de haver sequências que façam sentido. Às vezes, a transição de uma canção para outra, se formos para outro tempo, se não prestarmos atenção à própria tonalidade em que as músicas estão escritas, pode haver qualquer coisa que não bate certo. Portanto, para mim, a maior lógica acaba por ser a musical. Claro que pode haver opiniões discordantes sobre isto. E pareceu-nos que essa sequência de duas canções ficava muito bem a abrir o disco. "A Deusa do Amor" com aquele coral inicial — é uma canção musicalmente muito forte que dá logo um tom ao álbum — e, depois, a outra entra com um tipo de clima que não é incompatível.
A nível de conteúdo, existe, aliás, uma coisa que só descobri depois de estabelecido o alinhamento: é como se a deusa do amor (que está tão perplexa porque, no fim de contas, não compreende nada do amor), ao vir à terra, se encontra com as duas personagens da canção seguinte e, por sempre ter visto o amor de longe, se sente um bocadinho ultrapassada e perplexa. Para o bem e para o mal, os homens começaram a tomar conta das suas vidas e é por isso que a canção diz "em tempos idos, os Cupidos se visavam, acertavam" e, no refrão, fica a interrogação "talvez isto é que é isso a que chamam, lá longe, o amor".
Pode então depreender-se que esta é apenas uma colecção de canções com uma lógica de alinhamento predominantemente musical sem um qualquer fio condutor?
Não acho que haja nenhum fio condutor.
É porque eu li isto de outra forma... após essas duas rajadas iniciais, daí para a frente, há como que uma série de quadros de personagens ou de situações e, no final, com o "Só Neste País", abre-se o ângulo para uma espécie de plano geral onde todos se incluem...
Tens razão. O que eu dizia é que não houve nenhum fio condutor à partida. Houve pontos de "repère". A última canção sempre foi pensada como uma súmula, era óbvio que seria ela a encerrar o disco. Exprime um bocado aquela bipolaridade portuguesa até na própria forma: tem uma primeira parte que, embora irónica, é muito lírica, e, depois, entra a rasgar...
"Bipolaridade" portuguesa, no próprio sentido psiquiátrico do termo...
Psiquiátrico mesmo! A ciclotimia no seu estado mais puro. Somos mesmo ciclotímicos... Daí que tivesse de concluir o disco. Tal como "A Deusa do Amor" sempre me pareceu um óptimo começo até pelas primeiras palavras "ide ao dicionário"... ir ao dicionário é uma procura exaustiva do que se vai seguir. O que foi mais flutuante e acabou por ser interessante foi a disposição dos passos intermédios: há um primeiro tempo mais lúdico ("Não Há Duas Como Ela" e a "Marcha Centopeia"), com "O Velho Samurai" há um ponto de repouso e, a seguir, outras três de teor satírico e de crítica social muito determinada, "O Rei Do Zum Zum", "O Circo Monteiro" e "O Ás Da Negação". Mas essa tua leitura da estrutura do disco é engraçada porque isso seria sempre verdade mesmo com alguma alteração no bloco central... "bloco central", salvo seja!...
No losango do meio campo...
(risos) Isso... poderia haver aí várias alterações. Mas é verdade que há um percurso que começa por essa proposta e desemboca nesse final.
Antes de ir mais longe: o título, Ligação Directa, significa o quê?
Fui tirar fotografias com o Daniel Blaufuks e ele queria também fotografias de noite. Há uma garagem onde eu guardo o carro e, entre outras, aí tirámos algumas que acabaram por ir parar à capa e ao "booklet" do disco. Quando olhei para as fotografias, aquilo foi assim uma iluminação (com pouca luz...). Eu tenho uma grande dificuldade com títulos, muitas vezes são excrescências... alguma coisa que defina minimamente mas que não defina nada, às vezes, no limite pode ser um "soundbyte", mas tem de fazer sentido. Estava ali no meio dos carros e pensei nessa ideia da "ligação directa". Mas, como é evidente, é uma metáfora que extravasa e que pode ser ligação directa à vida, aos amores, aos públicos, aos meus músicos, ou fazer uma "ligação em directo" para... Estocolmo... e é aquilo também que as pessoas quiserem quando ouvirem. É suficientemente aberto para isso.
Dizias há pouco que "O Velho Samurai" era uma das canções-âncora do álbum...
É uma canção que me provoca sentimentos um bocado especiais... há coisas em que me reconheço, numa certa forma de "resilience", uma resistência à adversidade. Não sou eu, não é uma canção autobiográfica, é um tipo a quem a vida não correu bem mas que guarda o garbo e o brio, uma certa dignidade em não dar parte de fraco. Há personagens assim que observo no dia-a-dia e que sempre admirei muito. Não é por acaso que, no refrão, digo "o velho samurai palita os dentes mesmo se eles estão ausentes, mesmo se não tem comida". O que é, aliás, um velho dito samurai e foi o ponto de partida.
Um Hatori Hanzo português...
Exactamente. E é engraçado porque acabo por lhe chamar "japonês de Portugal", esse lado que precisamos de estimular.
Há, depois, o teu momento-Fellini, "No Circo Monteiro Nunca Chove"...
É fellininano sim, mas é uma metáfora portuguesa. Porque é um circo pobrezito que se vira para ter os seus momentos de glória. A música é circense mas também não é tratada stricto-sensu. Havia realmente um Circo Monteiro. Na minha adolescência, uma vez, estava a chover e eu fui assistir ao Circo Monteiro. Diziam "no Circo Monteiro nunca chove!". E, às tantas, tiveram de dar o alerta "Fujam que isto vai desabar!". As lonas estavam a dar de si...
No capítulo dos cromos-sociais, "O Rei Do Zum Zum" é uma alfinetada nos desgraçados "socialites" do jet-seis...
Essa canção era de uma peça de teatro — Portugal, Uma Feira Musical — tal como "A Deusa Do Amor". A canção não tem mistério, tem só crítica. É outra vez a ciclotimia nas capas das revistas côr-de-rosa: ora estão felizes, ora infelizes, até que são rabiscadas e lhes põem uns bigodes na sala de espera dos dentistas. Sem esquecer aquela ambição "que me retratem num livro, uma coisa romanceada, de conteúdo sólido e gasoso", o dar o salto para a literatura que é supostamente, uma coisa mais séria, hoje em dia toda a gente escreve livros...
É o chamado efeito-sandália-de-prata...
(risos) Exactamente... há já muitos precursores e seguidores...
Na "Só Neste País", gosto muito da ideia dos quatro primeiros versos todos concluídos com palavras exdrúxulas: "unamo-nos", "anónimos", "mínimos", "únicos"...
É o tipo de coisa que me dá muito gozo formal escrever. A ideia do próprio país exdrúxulo. No "Notícias Locais", também há um jogo de a-e-i-o-u: "Ainda a procissão vai no adro e já a zaragata é do ébrio, ainda a discussão vai no híbrido e já a certidão é do óbito, de subito um punhal". São coisas que não têm que ser óbvias, pode só reparar-se nelas à sexta ou sétima audição.
Em certa medida, este álbum é um pequeno edifício que montaste a partir de diversas canções foragidas (já referiste algumas) de outros contextos...
Não, não... menos de metade. De facto, têm-me perguntado "então, seis anos depois, outro disco de originais...", como se eu tivesse estado sem fazer nada. A verdade é que, pelo meio, houve O Irmão Do Meio que me consumiu imenso tempo, as dez canções dos Ubus, para o Ricardo Pais, várias peças de teatro... E há coisas que me esqueço de referir porque não tenho muito a noção do currículo, não faço essa contabilidade. No Retrovisor [biografia de Sérgio Godinho por Nuno Galopim], onde vêm todas as referências de todos os discos, com as capas e fichas técnicas, às tantas, dei-me conta quase sem me dar conta que não há uma referência aos meus prémios. Eu tenho-os lá em casa, isto não é fazer-me interessante e insinuar que isso não vale nada. Eu aceito-os e, ao aceitá-los, eles valem. Também tive a Ordem da Liberdade que tenho lá guardada numa gaveta não sei onde, mas está lá. Mas não os vou encaixilhar...
Não tens, portanto, uma sala de troféus, cheia de cabeças de veados e javalis...
(risos) Nunca recebi como prémios, senão, se calhar, tinha... (2006)
17 May 2007
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