A GLÓRIA DO KITSCH
Foi (19.05.05) uma grande noite kitsch na RTP. Primeiro, a meia-final do Festival da Eurovisão. Logo a seguir, a "Grande Entrevista" com Santana Lopes. Mas concentremo-nos nas coisas realmente importantes. O Festival da Eurovisão, então.
Musicalmente nulo, já se sabe. Olimpicamente ignorado de modo quase unânime pela indústria discográfica, certíssima na convicção de que, dali, só por milagre e raríssima excepção, pingam maravedis. Mas, como dizia, sempre um dos grandes e imperdíveis encontros anuais com o kitsch, numa das suas mais gloriosas expressões.
É, evidentemente, um gosto adquirido apenas reservado a palatos requintados: no kitsch, trata-se, sobretudo, de ser capaz de colocar entre aspas a exagerada desmesura do lixo — tenham as aspas lá sido intencionalmente colocadas pelo criador ou, perversa e deslumbradamente, pelos olhos e ouvidos de quem vê ou escuta. Uma espécie de higiénica abstinência dos valores do "bom gosto", da "arte" e da "autenticidade" que actua como purga estética e alegra o espírito.
E também, no caso do Eurofestival, um espaço mítico de convivência democrática e transnacional onde ex-futebolistas e ex-militares descobrem vocações musicais, jordanos podem representar a Eslovénia, estónios a Suiça e portugueses a Bélgica, loiras e morenas insufláveis partilham os seus três minutos de fama "disco" com clones noruegueses de New York Dolls+Village People+Kiss a reinventarem o "tranny-chic", Spice Girls bálticas e guerreiros pirenaicos de luzidios peitorais tatuados se cruzam com delirantes xâmanes punkóxungas moldavos,
num supremo hino à multiculturalidade, a candidatura austríaca propõe uma "salsa" (não, não é uma "valsa") cantada em inglês e castelhano e polvilhada de iódeléiús em serpentina,
e a do Reino Unido oferece um exotismo arábico-indiano interpretado por uma "joy division" de cortesãs negras.
O Festival da Eurovisão habita um universo particular: uma bolha temporal suspensa sobre o mundo na qual o folclore "exótico" dos Holiday Inn de Cracóvia coexiste com o refinado mobiliário de um templo Mórmon, um Taj Mahal da licra, da lantejoula e da "world music" tal como os melhores etnomusicólogos de Las Vegas a entendem.
E em que outra oportunidade (sim, onde senão ali?) nos é oferecido o deleite de ouvirmos o insubstituível Eládio Clímaco — após a actuação de um Bryan Ferry croata que, rodeado de gaitas de foles e flautas de pã, acabara de cantar "Os Lobos Morrem Sozinhos" — sabiamente comentar "talvez uma homenagem a Herman Hesse..."? (2005, ano-Eurovisão "vintage" em Kiev)
1 comment:
:)))
Sobretudo a parte da luminosa miscigenação de estilos/culturas/nacionalidades e a nota, em last but not least, ao enorme Eládio.
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