08 April 2007

"NÃO ESTARÁ, PORVENTURA, UM ESTRANHO A SINTONIZAR-LHE AS IDEIAS?..."
(Philip K Dick in Ubik)



Kubik - Metamorphosia

Não corresponde à verdade mas eu gosto mais da minha ficção: num universo perpendicular, o "K" isolado de Philip K Dick juntou-se a Ubik e, daí, resultou Kubik. E tudo faz um estranho sentido quando nos recordamos que, nesse romance de Dick de 1969, o gira-discos de Joe Chip sofre uma bizarra mutação temporal e se converte num aparelho de 78 rpm, movido a manivela e com uma agulha de bambu.

Imaginem, pois, a leitura de Metamorphosia através de uma agulha de bambu digital. É útil também supor que o objecto sobre o qual o estilete de bambu deverá deslizar possui duas faces: os velhos lado A e lado B. Porque, a partir daí, se começa a pressentir, em relevo, um esqueleto mínimo, uma estrutura funcional de organização que ajuda a identificar uma matriz por entre o labiríntico cafarnaúm sonoro.



"Como podemos nós sonhar com versos que não conhecemos?"
(Philip K Dick in Ubik)

"Intro-In: Shattering Song"; "Intro-Middle: Hitch Song"; "Intro-Out: Landscape Song". Eixos de agregação, núcleos densos de informação, agulhas ferroviárias de uma estética ultra-barroca do "cut+paste" em regime de eufórica celebração do universo de mil partituras virtuais, jogo de sobreposição, repetição e acumulação de memórias em espiral que literalmente se convertem em organismo devoradoramente consumptivo, metástase mutante.

"Persiste ainda uma espécie de universo em retardamento, semelhante a uma carga residual (...) mas altamente instável. Isto é especialmente verdade quando vários sistemas de memória se interligam"
(idem)



Literalmente num instante, despenham-se no abismo vozes latinas, descargas de metal incandescente, gaitas de foles, acordeões rive-gauche, explosões de percussão, alçapões digitais, logos sonoros de TV. A lógica Zorn/Carl Stalling — a sucessão dos acontecimentos musicais não deverá obedecer senão a um conceito de agregação (aleatório, eventualmente visual, potencialmente narrativo) que a excede e antecede — controla o lançamento dos dados, a arrumação dos fantasmas, a selecção de cores, formas e motivos.

"As formas anteriores devem transmitir uma vida invisível, vestigial, em cada objecto. O passado está latente, está submerso, mas está ainda ali, com possibilidades de irromper à superfície"
(ibidem)

Electrónica, improvisação, regeneração e reanimação de fragmentos à deriva, invenção de enquadramentos e cenários paralelos. De novo, musique oblique, multipolar, "cartoonescamente" delirante, rede de captura de vozes, emissões parasitadas, mensagens encriptadas em trânsito entre sistemas solares distantes. Sem rede. Em rede.



"Teve uma intuição, uma intuição que lhe gelou o sangue, de que, se procurasse nos bolsos e na carteira, encontraria mais. Isto era apenas o princípio"
(ibidem) (2005)


Kubik - Oblique Musique



Não sei se já terão reparado na incomodidade com que dizemos e escrevemos "século XXI" e naquela outra, simétrica, com que nos referimos ao século XX como "o século passado". Não é só uma questão de proximidade excessiva. É porque, desta vez, nem houve nenhum apocalipse anunciado nem a sensação de "fin de siècle" e de entrada numa nova era nos provocou qualquer espécie de "frisson" especial. Cumpriu-se o calendário e, pessoanamente, não houve mais metafísica. Claro que, simbolicamente, é muito mau e frouxo para as nossas pobres mentes humanas que apreciam esse tipo de rituais. Mas, particularmente aqui, na Ocidental costa, onde tudo é mais atenuado, tardio e suave, teremos de saber viver com isso. E, dessa mesma forma, haveremos de aprender a identificar as marcas do futuro, com ou sem calendário de permeio.



Como, por exemplo, esta Oblique Musique de um tal Kubik, aliás, Victor Afonso, residente na Guarda, um dos muitos possíveis epicentros do mundo contemporâneo (quer dizer, todos os possíveis) na era em que o mundo, informaticamente, se esqueceu de possuir um centro. Kubik é um espelho gloriosamente deformado de mil músicas, etnias, tradições e referências vertidas para um labirinto-quase-medina-árabe como metáfora do universo sonoro destes dias e que dilacera radicalmente os interfaces daquele alucinado "patchwork" ciberdigital onde, literalmente, todas as colisões se tornam possíveis. É muito, muito bom e, se calhar mesmo, o único álbum "moderno" (isto é, pós-apocalipse-"that never happened") de 2001. Seja lá isso o que for. (2001)

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