18 March 2007

OUTRA VEZ O TEMPO, AGORA

 

The End Of The Moon é a segunda parte de uma trilogia sem título: Laurie Anderson está sozinha em palco e encadeia as histórias que uma permanência como artista residente da NASA (e algum tempo de vida na Grécia e o 11 de Setembro e a sua cadela Lolabelle) lhe sugeriram. Como quem observa, de dentro, o mecanismo de um sonho e tenta compreendê-lo. E evitar que se transforme em pesadelo.  

The End Of The Moon aborda um dos seus temas e obsessões recorrentes: o conceito de tempo, da passagem do tempo. Porque voltou, de novo, a ele? 

À superfície, este espectáculo é o meu relatório sobre o período que passei como artista residente na NASA. E durante esse tempo a observar todos os sectores da NASA, o Hubble, o "jet propulsion lab", as actividades que mais me interessaram lidavam com grandes extensões temporais, podem levar até 10 000 anos a serem concluídas. Há a tendência para se pensar em intervalos de tempo muito curtos ou para se considerar apenas o futuro e esquecer o imenso passado que temos para trás. Interessaram-me as formas muito diversas como ali o tempo é abordado. Há tipos que estão só interessados na velocidade, em construir veículos muito, muito rápidos e outros que se dedicam a investigar o início do universo. Por outro lado, uma revista convidou-me a escrever um ensaio acerca do tempo e da beleza, "só" dois dos tópicos mais sérios que existem! Nessa altura, estava a viver em Atenas, a trabalhar em diversos projectos para os Jogos Olímpicos, e todos os dias olhava para o Parténon. Um arqueólogo responsável pela reparação do Parténon (outra tarefa que vai levar uns bons 500 anos!) ensinou-nos imensa coisa acerca da história da Grécia. Uma vez perguntei-lhe: "Foi aqui que teve lugar aquela gigantesca explosão cultural de onde nasceram a geometria, a filosofia, a arquitectura, a física, a tragédia. E, depois, tudo parece ter parado. O que aconteceu?" Respondeu-me — e eu acredito porque ele era exactamente como as imagens de Platão que conheço — que alguns dos que vinham adorar Atena, a deusa da guerra e da sabedoria, traziam para o Parténon estátuas cada vez mais belas, a ponto de ele se transformar numa espécie de museu. E muitos outros revoltavam-se contra isso por acharem que ali já não era possível orar.

  

Será que a necessidade de acreditar em algo é mais forte do que a vontade de inventar ou de conhecer? Agora que vivemos uma época terrivelmente conservadora nos EUA em que as seitas evangélicas procuram controlar a situação política e em que atravessamos a mais prolongada história de guerra do final do século XX e início deste, esta é-nos apresentada como uma série de sequelas, nunca se vê a totalidade. No espectáculo, nunca encaro isto de uma forma muito teórica. São histórias acerca da tecnologia, da guerra, outras, claro, sobre a minha cadela (risos)... contadas como se tivessem sido capturadas um instante antes de se poderem encaixar na nossa visão do mundo e de as podermos nomear e categorizar.   

Quando me apercebi que o espectáculo se chamava The End Of The Moon e pegava no conceito do tempo, associei-o imediatamente a The End Of Time, um livro de Julian Barbour (um professor de Física de Oxford), segundo o qual o tempo não existe mas apenas uma infinita sucessão de "agoras" eternos a que chama Platonia... 

É um budista! É exactamente o que um mestre budista diria. Vou já tomar nota, tenho de ler isso.

Li algures que anda a pensar em escrever um poema épico. Será algo como a Ilíada, ou a Odisseia? 

Como vê, passei tempo demais em Atenas... (risos) No meu mundo as coisas são muito curtas e apetecia-me escrever algo muito extenso. No fundo, é aquilo que estou a tentar fazer com esta trilogia de que a primeira parte foi Happiness. Ainda não sei bem como irá ser a terceira. O que não é mau. Não saber para onde vou é outro dos pontos em comum com os investigadores da NASA. Há muito mais semelhanças entre a arte e a ciência do que supunha. Einstein rejeitou algumas das suas teorias mais importantes por considerar que não eram belas. É em parte por isso que utilizo a beleza como parte deste puzzle que começa com a interrogação "Quem te ensinou o que era a beleza?". Aqui estou eu produzindo músicas, objectos de arte, mas como posso saber se se trata realmente de arte ou apenas de algo que, por acaso, naquela semana, se tornou popular em Nova Iorque? Talvez se trate apenas de um processo em que nos estamos a afastar dos próprios objectos. Desde o urinol do Duchamp, os tipos da "arte povera"... Onde irá isto parar? Talvez que a forma como vemos o mundo se transforme, ela mesma, em obra de arte, deixemos de precisar daqueles objectos de vudu que colocamos nos museus para representar a beleza e passem apenas a ser coisas que nos ensinaram a ver a beleza. Se calhar, só daqui a 10 000 anos porque nós adoramos objectos. Eu também.

   

Por outro lado, não tem a sensação de que a melhor filosofia e ficção actuais estão nas revistas de astronomia e astrofísica? 

Sem dúvida. Há coisas quase inacreditáveis nos cenários que nos apresentam. Essa ideia de que falou dos eternos "agoras" é de cortar a respiração... Uau! De certeza que poria os cabelos em pé a muita gente nos EUA... O quê, não há paraíso? Nem recompensa? Esta gente aqui adora julgamentos morais, dizer o que é certo e errado, fá-los sentir muito superiores. Aparentemente, há três milhões de budistas nos EUA. Está a tornar-se um movimento muito interessante, tem a ver com a ideia de liberdade, de não existirem figuras de autoridade. 

Uma vez disse-me que, se fosse budista, seria uma budista desconfiada... 

 (risos) Já não me sinto tanto assim. Caso fosse, seria uma budista muito curiosa.  

Concorda se disser que, nos seus espectáculos, procura fazer colidir ideias e conceitos que, supostamente, não deveriam coexistir num mesmo momento? Sim, no fundo, é um processo utilizado por todos os contadores de histórias. E é mais fácil de utilizar quando se trabalha com histórias curtas que, aparentemente, nada têm a ver umas com as outras (bom, estou a adorar acordar numa manhã de domingo e pôr-me a filosofar!...). Chamo-lhes histórias de cão vadio: vão por aqui, por acolá, viram uma esquina, dão quinze voltas ao quarteirão antes de voltarem ao presumível tema. Pode soar pretensioso mas, com todos esses "jump cuts", procuro reproduzir a forma como penso. Não se trata de realismo ou de tentar simular o funcionamento do cérebro. Mas desconfio muito do modo como as histórias habitualmente funcionam, como se a estrutura as obrigasse a um final determinado. E a maioria das coisas não o tem... Muita gente também imagina que a vida tem de ser assim, com princípio, meio e fim.  

Inventamos a nossa própria biografia a partir de fragmentos de memória de tal modo que, se um observador externo inteiramente objectivo pudesse existir, provavelmente nunca reconheceria ... A todo o instante. São as histórias que nos contamos para podermos andar para a frente. E as outras pessoas dizem-nos "Mas tu não és de todo assim, é impossível!". É como o "cartoon" do marinheiro e do gato numa ilha deserta que vêem uma sereia. O marinheiro imagina que ela tem pernas e o gato supõe que ela é toda peixe (risos). Por vezes, apercebemo-nos que não estamos a ver as coisas com clareza mas apenas a parede do fundo do nosso cérebro. Uma das coisas que mais apreciei na NASA foi esse poder da observação. Enquanto artista, tento ser um pouco como um bom jornalista: ver bem o que ali está. Ou o que poderia ali estar.

Essa espécie de itinerário mental errático está bem presente nos vários tópicos do espectáculo: os hábitos de nidificação dos pinguins gay, a imposição de Thomas Pynchon de que qualquer adaptação musical dos seus livros deveria ser feita em banjo... 

Procuro construi-lo como um sonho que, de certo modo, se vai estruturando. Gosto muito de coisas que se nos impõem mas que, ao mesmo tempo, são indefinidas, não sabemos por que nos atraem. São essas que me fascinam. E que, desta vez, tem a ver com a sensação de perda de muitos de nós, hoje, nos EUA, e com o clima muito conservador em que vivemos.   

É ainda a ressaca do 11 de Setembro... 

 Sim. A paranóia da segurança. Claro que toda a gente deseja viver em segurança, não vou brincar com isso. Nesse dia, não fazíamos ideia do que iria acontecer depois... a seguir, seriam Londres, Paris? 

E uma semana depois, estava a actuar no Town Hall de Nova Iorque... 

E, nessa mesma noite, em Chicago! Nós aqui a falarmos de viver no presente!... Naquela noite,não podíamos estar mais no presente! Tínhamos estado a ver aquelas imagens todo o dia. Adoro o trabalho que faço mas grande parte do tempo estou sozinha com o computador. Estar junto do público no interior daquele terrível sonho não é possível descrever. (2005)

4 comments:

Anonymous said...

(baixinho) tenho o concerto em mp3, se for necessário

João Lisboa said...

hmmmm...

Anonymous said...

posso enviar para um mail (sem custos)

menina alice said...

"as histórias que nos contamos para podermos andar para a frente"

:)