01 March 2007

O LADO DE FORA DO CONSERVATÓRIO



My Brightest Diamond - Bring Me The Workhorse





Regina Spektor - Begin To Hope

Shara Worden (o nome verdadeiro de quem se esconde por trás do heterónimo My Brightest Diamond) não só fez coros em Illinois, de Sufjan Stevens, como partilha com ele uma história familiar e musical peculiar: neta de um evangelista nómada executante de Epiphone, o pai foi campeão nacional de acordeão — o que quer que isso queira dizer — e a mãe organista da igreja pentecostal de Ypsilanti, no Michigan, proporcionando-lhe ambos, para além disso, uma banda sonora doméstica constituida por jazz, música clássica, gospel e tango.



Deve ter sido, assim, uma consequência quase natural que lhe tenha despertado o apetite pela inscrição num curso da University of North Texas dedicado à música de Purcell e Debussy e que, após ter ido viver para Nova Iorque, aí tenha continuado a estudar ópera ao mesmo tempo que frequentava a Knitting Factory ou The Living Room. A biografia de Regina Spektor (até porque são vários os pontos em comum) também vale a pena ser contada:



nascida em Moscovo, em 1980, de pai fotógrafo e violinista e mãe professora de piano no conservatório local, estudou piano desde os seis anos e, quando, aos primeiros sinais da "perestroika" que permitiu a emigração dos cidadãos judeus para o exterior da antiga União Soviética, a família Spektor, em 1989, viajou para os EUA e se fixou no Bronx, primeiro continuou a estudar com Sonia Vargas, da Manhattan School Of Music, e, depois, matriculou-se no Purchase College de Nova Iorque e aí concluiu o curso de piano enquanto, à noite, experimentava apresentar-se num ou noutro café do East Village interpretando as suas primeiras composições.



É verdade que a formação musical académica nunca foi pré-condição indispensável para a criação de pop memorável — podia mesmo fazer-se um interminável inventário dos casos onde o lastro erudito só gerou os mais indigestos pastelões — mas Bring Me The Workhorse (álbum de estreia de My Brightest Diamond) e Begin to Hope (segundo "oficial" de Regina Spektor a seguir a Soviet Kitsch, de 2004) não sofrem de nenhum dos embaraçosos edemas estéticos de que, justamente, se poderia recear.



Muito pelo contrário, tanto Worden como Spektor controlam superiormente a dinâmica e a forma do idioma pop/rock, conhecem de trás para a frente as referências sobre que trabalham, recortam-nas e transformam-nas à sua medida e, do "currículo universitário", parece restar apenas o que verdadeiramente importa: a facilidade e o à-vontade para lidar com textos e matéria musical e, a partir daí, inventar uma trajectória individual.



Ao ponto de se poder afirmar que Bring Me The Workhorse é o álbum que PJ Harvey, desde Stories From The City, Stories From The Sea, anda à procura de gravar, sobreposto ao terceiro tomo da trilogia que os Portishead nunca concluiram e também ao que deveria ter sido o legítimo sucessor de Felt Mountain, de Goldfrapp.



Sem que, nem uma única vez, nos apercebamos das linhas de sutura ou haja oportunidade de identificar de onde provém exactamente, em cada momento, este ou aquele farrapo: de faixa para faixa e no interior de uma mesma canção, Shara Worden passa, sem que se dê por isso, de um registo-Beth Gibbons para um enigma de piano preparado, celesta, quarteto de cordas e caixa-de-música, daí para um salão ao lado onde as pegadas de Jeff Buckley e Vini Reilly se cruzam e que abre para uma atmosfera sombriamente vitoriana logo rasgada pelo sangue, terra e fúria dos blues uterinos de Polly Jean. Muito dificilmente surgirá estreia mais impressionante até ao final do ano.





Regina Spektor (nenhuma relação com o lendário Phil a não ser, sabe-se lá, através do longínquo avô deste, também judeu russo emigrado para a América), às primeiras impressões, faz pensar bastante na praticamente "desaparecida em combate" Brenda Kahn (do mui excelente Epiphany In Brooklyn) mas, devidamente escutado, Begin To Hope demonstra como a linhagem deste quase perfeito "songwriting" passa por marcas tão distantes como Fiona Apple, Chopin, Randy Newman, o "doo-wop", Laura Nyro, Gershwin, Björk, Judee Sill, Paul Simon ou uma Tori Amos de instinto pop mil vezes mais apurado.



Tudo isso e, do lado dos textos (que, desde o início, semeou de alusões a Hemingway, Fitzgerald, Pound e Woolf e, desta vez, o poema "Fevereiro", de Boris Pasternak, enxertado em russo na tempestuosamente eslava... "Après Moi"), o género de precisão letal capaz de alinhar palavras como "you're young until you're not, you love until you don't, you try until you can't, you laugh until you cry, you cry until you laugh, and everyone must breathe until their dying breath". Afinal, o conservatório nem sempre mata. (2006)

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