O CAÇADOR DE CLICHÉS
Stephin Merritt, o micro-Cole Porter dos Magnetic Fields (e dos 6ths e dos Future Bible Heroes e dos Gothic Archies), adora os clichés como matéria-prima para canções. Stephin Merritt, o mini-Noel Coward que baptizou a sua banda com o nome de uma obra fundadora do surrealismo (Les Champs Magnétiques, de André Breton e Philippe Soupault), até é um cavalheiro discreto e atinado. Stephin Merritt, o songwriter que venera Irving Berlin e os ABBA, acabou de colaborar em duas óperas chinesas. Mas não é disso que agora fala — lacónica e telegraficamente — esta reservada personagem que duvida seriamente que a rádio vá para o ar...
Tanto 69 Love Songs como, agora, i (em que todas as canções começam por esta letra), são, de certo modo, álbuns conceptuais. Parece-lhe essa a forma ideal de articular as suas canções?
Para mim, um álbum conceptual é algo como Ziggy Stardust em que aparece uma personagem que atravessa várias canções. 69 Love Songs é aquilo a que chamaria um álbum temático — como Songs For Swinging Lovers, de Frank Sinatra — onde todas as canções se arrumam numa categoria determinada. O mesmo acontece com i. O que acaba por ser uma paródia de 69 Love Songs: organizar as canções de acordo com um tema totalmente arbitrário.
Uma paródia em que sentido?
Na medida em que pego na mesma ideia original e a exagero para além de tudo o que seria razoável. Em 69 Love Songs existia um exagero através da dimensão de álbum triplo. Em i é a própria arbitrariedade do tema que é conduzida ao exagero. Se se escutasse o álbum sem reparar nos textos ou nos títulos das canções nunca se poderia adivinhar qual é o tema dele.
É engraçado porque o próprio desenho gráfico do "i" minúsculo poderia ser associado à sua figura física...
Quer dizer, sem braços nem pernas?... (risos) É, de certa maneira, uma figura de "cartoon" que poderá ter a ver ou não com a minha própria personalidade. O que não tem a menor importância.
Mas esse "i", mesmo não sendo sempre o pronome pessoal "I", tem, ainda que vagamente, algum lado autobiográfico?
Não. São canções curtas em que não faz qualquer diferença saber se são autobiográficas ou não. Elas não lhe dizem nada acerca disso. Têm a duração suficiente para descrever uma determinada situação e, eu tê-la vivido ou não, é completamente irrelevante. "I Looked All Over Town" é acerca de um palhaço que se evade do circo e isso não é literalmente acerca de mim mas sobre o que essa personagem sente e com o qual toda a gente (bem... quase toda a gente) é capaz de se relacionar. Não posso dizer que seja uma canção autobiográfica mesmo que seja "não não-autobiográfica". O que é uma questão que se pode sempre colocar acerca de uma coisa tão curta e não-literal como é uma canção.
Há uma característica muito acentuada nas suas canções que tem a ver com o seu gosto de jogar com clichés e virá-los do avesso. Concorda?
Absolutamente. Os clichés são uma coisa óptima. Uma espécie de estenografia. Consegue-se dizer muito mais se formos capazes de incorporar os clichés na escrita. É como no cinema: basta um plano de Monument Valley e não resta a menor dúvida de que se trata de um "western". Não é preciso dizer que horas são, onde estamos, que personagens são aquelas...
E isso funciona exactamente da mesma forma com as canções? Utiliza-os como peças de Lego para estabelecer os cenários?
Na escrita de canções não é preciso ir à procura dos clichés. Eles nunca andam longe. Basta procurar uma rima. A rima é que é melhor que não seja um cliché.
O facto de ter sido "copy editor" da revista "Spin" ensinou-lhe alguma coisa acerca de como funciona a crítica musical?
Fui apenas durante alguns meses, muito informalmente, poucas horas por semana. Em rigor, era revisor de provas. Já tinha trabalhado antes também como jornalista na "Time Out", em Nova Iorque. Mas sei muito bem como funcionam os jornalistas. Aliás, sei mesmo até como se faz um jornal inteiro... O que me intriga é a rádio. Não consigo entender como se consegue fazer aquilo, como aquilo funciona. Nunca trabalhei na rádio embora, habitualmente para ser entrevistado, já tenha estado em centenas de rádios. Mas como é que eles sabem que estão no ar? Como podem ter a certeza? Podem estar a falar sozinhos....só pode ser uma questão de fé... (risos)
Ficámos com óptimas memórias do último concerto dos Magnetic Fields em Lisboa...
Eu não... estava bastante doente, não consegui passear em Lisboa sequer cinco minutos. Ainda por cima, tinha um artigo para escrever que já estava atrasado. Tudo o que fiz foi sair do hotel, subir ao palco, voltar para o hotel e apanhar o avião. Espero que, desta vez, seja diferente. (2004)
1 comment:
excelente entrevista João.gostava de ter o teu contacto para te enviar alguns cds promocionais.se estiveres interessado dá luz verde para david(at)team.jud.as. Abraço...
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