23 March 2007

NERVOS MODERNOS



Algures pelo meio de Brava Dança, pareceu-me que teria sido inteiramente apropriado que os realizadores Jorge Pires e José Pinheiro se tivessem lembrado de inserir no corpo do filme esta citação de Fernando Pessoa: “Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural. A coerência, a convicção, a certeza, são, além disso, demonstrações evidentes – quantas vezes escusadas – de falta de educação. É uma falta de cortesia com os outros ser sempre o mesmo à vista deles; é maçá-los, apoquentá-los com a nossa falta de variedade. Uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada, tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certezas várias no mesmo dia”.



É que, não só a matriz ideológica da aventura dos Heróis do Mar se desejou entranhadamente quinto-imperial e pessoana, como, se há coisa de que a trajectória do núcleo de músicos que viajou dos Faíscas aos Madredeus, passando pelo Corpo Diplomático e Heróis, não pode ser acusada é do pecado da coerência: num percurso iniciado como devotos do prog-rock, do dia para noite, converteram-se ao punk, escorregaram, a seguir, agilmente, para a new-wave, envergaram o uniforme “new-romantic” (os Heróis do Mar propriamente ditos, com retoques de cosmética “folclórica”), aderiram à pop dançável facção-New Order e, finalmente, desaguaram na cançoneta acústica de salão, solenemente “lusitana”.



De permanente, terá apenas existido uma obstinação na busca da fórmula ideal capaz de fazer disparar a circulação dos discos – enfim encontrada, de forma consistente, com os Madredeus – e uma certa “trademark” de nacionalismo, mais ou menos “integralista” (Heróis-primeira fase) ou exportável e turisticamente “light” (Madredeus).



E não é possível, sem uma razoável dose de ironia, ver e escutar Pedro Ayres de Magalhães confessar hoje, com a maior candura, quão grande foi a surpresa dos Heróis (que até estiveram para se chamar Raça…) ao defrontarem-se, meia dúzia de anos após o 25 de Abril, com suspeitas de “fascismo” e outros reaccionários pecados, eles que tão aplicadamente reanimaram o catálogo quase completo da iconografia e dos estereótipos “patrióticos” e militaristas do Estado Novo como estratégia de “marketing” deliberadamente ambígua e provocatória. A“pátria”, porém, não estava, então, ainda madura para acomodar tais frescuras e, antes de – de acerto em ajuste – se ter chegado à diluição exacta do princípio activo em Os Dias da Madredeus, os disparos mais certeiros acabaram por ser as frivolidades dançantes de “Amor” e “Paixão”.



Significativamente (com ou sem cruz de Cristo e bélica foto de capa residuais), a compilação que acompanha a estreia do filme chama-se… Amor. Afinal, nas doces praias da Lusitânia, por mais hinos, lanças e estandartes que agitem, os bravos heróis, navegantes e guerreiros nunca deixam de sonhar com o repouso e com os “fringe benefits” das sereias locais. E isso, reconheça-se, é que é coerente e bom. (2007)

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