20 February 2007

TEATRO EM TEMPO DE GUERRA



Se há coisa que a música portuguesa tem de bom é o facto de nela — ao contrário das "grandes nações musicais" — praticamente não existirem, "cenas", "tendências", "correntes". Existem as "famílias" do fado, da MPP, do rock e da pop mas, no interior de cada uma, praticamente só se encontram casos singulares. E, quase à margem de todas elas (mas atravessando-as a todas também) o caso singular dos casos singulares: a trupe de músicos Belle Chase Hotel, emanação da "colónia de bactérias sociológica coimbrã", cujo primeiro álbum, Fossanova, havia sido uma revelação e de quem o segundo, La Toilette des Étoiles, é já, à distância de dois meses, o principal candidato a álbum do ano da produção paroquial. JP Simões, bardo eloquente, teórico-prático da "escatologia poética" e porta-voz desta associação recreativa de descriogenizadores de personagens desmoronadas entende, porém, explicar como esta "toilette" é, agora, menos fossa séptica e mais toucador de maquilhagem da realidade.



À primeira vista, dir-se-ia que, de Fossanova para La Toilette des Étoiles, o cenário não mudou radicalmente mas modificou-se sim o cuidado com os adereços, a decoração, o guarda-roupa e as luzes...
Sem dúvida. A presença do Joe Gore foi determinantíssima. Ele procurou ser magnânimo no meio de todos estes indivíduos díspares que fazem esta banda. Acabou por ser um pouco a metáfora da relação entre democracia e ditadura. Além de gerir a banda, geriu também o trabalho de produção criativa, não teve um papel meramente técnico ou executivo. Dá para adivinhar que ele chegou ao fim doente: com uma alergia, 40 graus de febre, o homem começou a delirar de ansiedade... (risos). Foi tudo feito num estado de emergência, teve que se decidir até que ponto algumas ideias orquestrais seriam importantes para a eloquência da música. O Joe foi cortando nessas coisas todas num trabalho de "less is more" que conduzia sempre à economia de vozes e fugia à redundância: "I want to calcificate these songs", como ele dizia.



O disco é muito reconhecivelmente Belle Chase Hotel mas, ao mesmo tempo, também se pressente bastante aquele tipo de orquestração-das-traquitanas-sonoras que, com a participação do Joe Gore, nos habituámos a ouvir nos discos do Tom Waits...
Ah sim, esse duende... Por mim, isso existia muito mais vezes nas músicas. Nós tínhamos como a pré-concepção de uma sopa: tudo cortadinho mas nada ainda misturado. O Joe actuou connosco na base de uma doce chantagem: "eu achava que isto aqui era capaz de ficar melhor assim...". E nós, "claro que sim, tens toda a razão"... Impôs-se mas não pisou ninguém.

É curioso teres dito que o disco surgiu um pouco sob pressão quando a ideia com que fiquei foi a de ele possuir uma narrativa quase sequencial, aparentemente planeada, das diversas atracções que vão subindo ao palco de um cabaret...
Têm a mesma circunstância de teatro em tempo de guerra. Havia já imaginários previstos e personagens à espera de serem descriogenizadas que acabaram por seguir essa tensão de urgência da produção que se confunde com uma urgência quase de relação com o mundo, uma tensão não de pré-milénio mas de pré-parto prematuro. Trabalhei em gestão de telefone vermelho com a imaginação: "por amor de Deus, neurónio acorda, larga esses chinelos e ajuda-me! Como é que estes tipos vivem, o que é que eles fazem, o que é que eles têm a ver com o raio do sentimento de encanto e, ao mesmo tempo, de tragédia que as estrelas nos provocam?"



Aquelas personagens são mesmo personagens ou és tu por interpostas pessoas?
Noutro dia, perguntaram-me quem é o nosso público? Qualquer pessoa que crie ou que viva com alguma intensidade tem imensos interlocutores privilegiados. Escreve-se na presença de todas as pessoas que já se leu ou já se ouviu. Os interlocutores são toda essa gente. Pelo menos no meu caso, que não fui apanhado nas obras e transformado em João Melancia-amor-como-te-quero-daqui-até-à-Bahia... Esses desdobramentos das personagens também são interlocutores. São personagens de outras pessoas adoptadas por mim. Depois, é-me muito difícil aperceber-me da fronteira exacta entre o que eu vivi e o que confundo já com ficção. Aí já desisti há muito tempo de ser uma pessoa séria, um daqueles tipos que sonham das cinco às seis... Uma coisa sei: relativamente ao primeiro álbum, estas personagens são muito mais do exterior. Enquanto o outro tinha alguma coisa de fado/blues, eram tudo confissões escarrapachadas com algum delírio, aqui tentei afastar-me ao máximo das coisas que estava a escrever. À medida que isso foi acontecendo, tentei encontrar provas da minha existência na realidade: ando para aqui só às voltas no meu próprio jogo de espelhos, a gerir o meu autismo ou tenho uma referência clara na observação dos outros? Se bem que, no início, os sentimentos de determinadas personagens acabam por ser os meus.



Mas na vossa escrita de canções há um elemento muito forte tanto de erudição literária como musicológica, não há?
Há um lado muito libertário nesta coisa da escrita que é não ter muito pejo em apropriar-me das personagens todas que vou conhecendo. Posso usar as referências de todos os heróis abnegados, de Cristo a Gandhi ou ao Martim Moniz, para depois as transportar para uma narrativa cujo sentimento será meu. As personagens são praticamente retiradas de uma colónia de bactérias sociológica coimbrã. Depois meto um bocado do drama dos solitários urbanos do James Joyce, não consigo fugir disso. A seguir, junto aquela paranóia de estar a ser filmado por Deus — que já é muito antiga mas agora as pessoas insistem em banalizar até essa questão — e faço uma coisa baseada nos filmes de publicidade americanos dos anos 30 que eram uns bonequinhos que explicavam a essência do capitalismo. É uma boa maneira de explicar o que os outros chamavam antigamente "estar sentado e, de repente, passar um anjo", a inspiração... É um trabalho de atenção e de reciclagem na confusão que é uma cabeça a especular.



La Toilette des Étoiles é apenas uma forma de traduzir Fossanova para francês?
Acaba por ser. "Je vais à la toilette". Tanto pode ser "vou à fossa" como "vou-me maquilhar"... Previ mais ou menos que isto se pudesse começar a tornar (pelo menos da minha parte) uma banda escatológica. Fossanova, de certa maneira, era um facilitismo, qualquer coisa podia caber naquele título, entre o escatológico e a referência à música de uma burguesia iluminada como era a bossanova. La Toilette des Étoiles, quando surgiu, também pensei que podia ser a sanita das estrelas. Há uma amargura e um cepticismo maior destas personagens. As estrelas são as convidadas especiais deste disco. Há quem nasça e tenha uma concepção da condição humana como algo absolutamente trágico onde não vale a pena investir em coisa nenhuma porque daqui a nada vai tudo pela sanita abaixo e outras pessoas que nascem com a ideia que isto é um período fugaz mas, por isso mesmo, é a pérola que deve ser mais trabalhada. Essa ambiguidade da "toilette" — neste caso, o embelezar das coisas — acabou por ser o que deixei ficar como a minha explicação oficial. O proximo, se calhar, vai chamar-se Cotonette On Earth, algo mais terra a terra. Estou, talvez, condenado ao meu extremo ser sempre a escatologia poética (ou patética, sei lá), a vertigem do esgoto, sabendo de antemão que todas as personagens que crio se vão escafoder no seu anonimato e insignificância e que já nascem desmoronadas. (2000)

2 comments:

ND said...

eu nem vou confessar a coisa surpreendente que aprendi (fiquei a saber!)agora mesmo ao ler-te, porque é uma ignorância de que me envergonho.

Unknown said...

Ser blogueiro também é cultura... gostei do que li e certamente aprendi mais alguma coisinha de muito interessante!