A SINFONIA DO "BIEN-ÊTRE"
O quarto número 26 do Belle Chase Hotel é o sítio onde no filme de Jim Jarmusch, Down By Law, o chulo John Lurie era apanhado numa armadilha policial, atraído pela promessa de carne jovem e fresca. Belle Chase Hotel é agora também o nome de uma surpreendente banda de Coimbra que, com Fossanova, oferece a mais impressionante estreia portuguesa de 98. "Easy listening" contaminado de angústia pré-milenar, armadilha do amor, tragédia chique e requintada ou dança melancolica na corda bamba, para JP Simões, cantor, jornalista, autor dos textos e ex-elemento dos Pop Dell'Arte, é apenas uma tentativa de "fazer o melhor antes de bater a bota". E, de caminho, promete escrever a Jarmusch, agradecendo-lhe a deixa com o envio de um maço de tabaco para que ele não cumpra a ameça de Blue In The Face onde anunciava que iria deixar de fumar...
Até ter ouvido falar de vocês a propósito do Festival de Paredes de Coura, confesso que nada sabia da banda. Como é que vocês apareceram?
Por pura insatisfação. Em 95, eu estava nos Pop Dell'Arte e fomos tocar também a Paredes de Coura. Três ou quatro amigos foram comigo e, no meio daquelas bandas e daqueles instrumentos todos, não se ouvia nada de especial. E foi mesmo assim, resolvemos fazer uma banda. Foi tipo promessa: fomos ao Norte e voltámos de joelhos a Coimbra para ter uma banda. Começámos a gravar maquetas e as pessoas que fomos convidando para trabalhar no estúdio acabaram por ir ficando connosco. Quando demos por nós, éramos nove elementos mais um performer que agora está na Dinamarca.
O que é interessante é que, de súbito, vocês aparecem como um grupo completamente formado, com ideias e canções amadurecidas, como se já existissem há muito tempo...
Qualquer uma das pessoas que tem um trabalho mais determinante a nível de composição já tinha um percurso musical. Muitas daquelas canções já estavam feitas no nosso baú pessoano. Foi um trabalho de dois anos. Para nós, isto é o fim de um ciclo, não é um princípio. Começou por ser uma espécie de fogo de artifício com toda a gente a querer pôr o seu pedaço de som mas, quando começámos as gravações, tentou-se elementarizar as coisas o mais possível. O que não parece nada, pois não?... Grande parte do trabalho de produção foi feito pelo Pedro Renato (que compõe basicamente as músicas), guitarrista criador de clássicos instantâneos.
Esta é uma pergunta irremediavelmente idiota que nunca se faz a ninguém mas que, no vosso caso, sinto a necessidade irreprimível de fazer: como é que chamam à vossa música?
Não sei, é capaz de ter o seu quê de música-Roxy ou rock-sexy... Aos poucos, foi avançando para uma forma orquestral. Eu costumo chamar a isto "international fado" [pronunciado "feido"] porque há um trabalho de composição que não se prende com fronteiras, aceitamos claramente os nossos milhões de referências. Ao mesmo tempo, aquilo que integra mais as músicas é uma certa melancolia, um certo peso. A ideia que eu tenho é que nós estamos a fazer música portuguesa nem que seja cantada em esperanto e que contém sentimentos lusitanos e magrebinos. No grupo, há desde amantes do "easy listening" a tarados por Mozart, grandes admiradores do excesso punk fora de prazo ou da desconstrução do jazz à maneira dos Lounge Lizards. Não é um grupo rock nem super-pop mas damos uma primazia extrema à criação de melodias.
Transportaste para aqui alguma coisa da tua experiência nos Pop Dell'Arte?
Nos Pop Dell'Arte descobri uma espécie de ovo de Colombo que é podermos fazer mil coisas disparatadas e levá-las muito a sério. Há por aí muita falta de libertinagem... É um bocado como aquela teoria de que, se tomares um ácido, vais ficar com espaços no teu espírito que não existiam antes. E, uma vez abertos, ficam lá para sempre. Foi o que me ficou dos Pop Dell'Arte: um belíssimo buraco que me deixou a sensação clara que é legítimo tentar fazer tudo, ser libertino, fazer o melhor antes de bater a bota.
Numa entrevista, dizias que "anda tudo a fazer merda e a olhar para o lado". É essa a ideia que tens mesmo da música portuguesa?
Isso era eu (como agora o Saramago) a aproveitar o meu tempo de antena. Mas estou um bocado convencido disso. Não há nada mais horrendo do que acordar e ter uma melodia xunga na cabeça que não consigo tirar de lá... E ver toda a gente travestida de cyborg na TV e na rádio, brasileiros aos gritos a dizer "gentji boniiita!"... Embora o mau gosto já existisse por uma grande dose de falta de convicção, agora há uma imensa reverência em relação ao pop-xunga.
Embora o vosso disco me divirta muito mais, parece-me que há uma grande afinidade entre o que vocês fazem e o ponto de vista dos Los Tomatos...
Os Tomatos também funcionam como uma salada de frutas. Mas eles trabalham mais dentro do espírito das danças de salão. Nós somos capazes de entrar nesse mundo mas vamos até uma sala recondita do barco do amor onde se ouve música mais intimista. Dizes que estas músicas são divertidas mas isso será mais verdade ao vivo onde tenho sempre uma sensação de "like a virgin". Ao cantá-las, preciso de ironizar porque, caso contrário, começo a chorar. Há ali coisas que são descrições terrivelmente tristes e quase fotográficas de situações que só podem ser recobertas por essa ironia.
Uma espécie de dança em cima do caixão...
É uma boa descrição... Vejo TV e saio para a rua e há por aí uma tristeza desgraçada, uma morrinha constante com a porcaria de vida que as pessoas têm. Há uma necessidade de subir um bocado acima disso e viver na estratosfera. Mas, onde quer que vás, levas sempre o que vês à volta. Tanta gente indigente, tanta treta, tantos homens presunçosos nos seus fatos de macaco formalóides... O nosso proximo álbum vai ser profundamente lamechas, "muita deep, man"... "god" ao contrário é "dog", não é?...
Essa vossa farsa em torno da tragédia bebe muito das músicas do Esquível, do Martin Denny...
E dos Bacharachs, da música dos policiais de S. Francisco, dos western spaghetti... Na forma como o Pedro Renato encara a escrita das canções, todas essas referências lhe são imediatamente aplicáveis na construção de uma espécie de sinfonia do "bien-être" a roçar um certo barroquismo, com as flores a sair pelo cimento... o outro lado é mais específico de mim.
Os textos que escreves saem-te espontaneamente em inglês ou já te aconteceu escrever também em português?
Sai-me sempre espontaneamente em inglês. A própria língua quase transporta os seus temas. Em português, sinto menos elasticidade emocional, vejo-me quase sempre forçado ao trocadilho, à jiga-joga ou a um profundo miserabilismo. Há anos, fazia montes de letras em português mas era aquele português pretensioso dos jovens leitores de poesia eivados de sentimentos metafísicos, coisas cheias de miasmas da adolescência, uma forma muito coxa de estar no mundo, escondida atrás daqueles palácios de linguagem tipo "uivo teleológico". Como é evidente, desisti, não é? (1998)
20 February 2007
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