25 November 2024
24 November 2024
MEA MAXIMA CULPA (VII)
(publicado no nº 11 da "Granta")
(sequência daqui) Mas verdadeieamente sísmico foi o encontro imediato com os Rollerskate Skinny! No "field report", relataria quase telegraficamente "um concerto de rock flamejante (como em 'gótico flamejante') construído sobre um 'patchwork' de Sonic Youth na técnica de esforço dos materiais, Echo & The Bunnymen na complexidade da arquitectura, Pixies na disciplina formal e Neil Young no arrojo clássico, num somatório elevado à milésima potência". Porém, escutado Horsedrawn Wishes (1996), não houve hipérbole insuflada que bastasse para traduzir o estado alterado de consciência por via exclusivamente sonora. Começava — evidentemente — com "Toca-me então a mim finalmente dizer: eu vi o futuro da pop e ele chama-se Rollerskate Skinny!" e terminava, claro, bradando "Peço imensa desculpa mas este não é o meu álbum do ano, estou a reservar-lhe o lugar da década. Quanto ao século, se não se importam, dêem-me mais algum tempo para pensar". Pelo meio, avistava "uma prodigiosa (estou a pesar bem as palavras) montagem de 30 anos de pop, aos quais o trio de 'dubliners' extraiu todas as fibras vivas e, como Frankensteins competentes, a partir delas criou um novo organismo (...), rebuçados de melodia embrulhados em esquadrias de ruído, cenários surreais atravessados por intromissões lunares, moinhos sonoros e corais docemente labirínticos. Um edifício construído como uma catedral medieval desenhada por um Hyeronimus Bosch que trabalhasse para Walt Disney, com tanto de arte pop como de iluminura gótica (...), 'flashes' de Pet Sounds e o género de caótico bricabraque psicadélico de alquimistas esotéricos como Van Dyke Parks e os XTC. Queiram perdoar a miserável limitação das referências: aqui também há Gershwin, Pixies, Steve Reich, música concreta, Glenn Branca, Kevin Ayers e Ramones. Muito raras vezes 12 composições fizeram tão perfeito sentido de modo a ser absolutamente impossível excluir umas ou destacar outras. Aquilo com que muitos outros sonharam, os Rollerskate Skinny realizaram".
23 November 2024
A petúnia murcha, a suave e fofa costureirinha, a meiga Floribella, a deliciosa
mistura de professora primária solteirona, Laurinda Alves de saias,
escuteirinho sonso e xâmane de comuna hippie do sector dos bancários, o verdadeiro Tózero, o autêntico Cocó Rosie do Rato, está a ponderar "sem rancores" e o universo à volta rescende a flores de jasmim
22 November 2024
MEA MAXIMA CULPA (VI)
(publicado no nº 11 da "Granta")
20 November 2024
MEA MAXIMA CULPA (V)
(publicado no nº 11 da "Granta")
(sequência daqui) Dava-se o caso, porém, de tudo isto vir à baila a pretexto da publicação de Swordfishtrombones (1983), um daqueles álbuns que definem clarissimamente um "antes" e um "depois" no percurso de quem os assina. Como ele explicaria em 1988 — já a descendência singular desse álbum se iniciara com os magníficos Raindogs (1985) e Frank's Wild Years (1987) —, "Os últimos álbuns têm contido bastantes ilusões de óptica, foram menos lineares, nenos convencionais. Tentei usar algumas técnicas para enevoar os contornos. As canções estão mais desfocadas. Basicamente, tentei provocar-lhes esgotamentos nervosos e, ao mesmo tempo, comunicar-lhes mais vida. Cada vez mais tento fracturar as coisas de modo a não lidar com elas tal como são. Começo a tornar mais abstractos os territórios familiares para lhes oferecer algo como um contexto cubista. Posso estar a olhar para a mesma ponte que tu mas desmantelada, recomposta de outra forma, à minha maneira. Digamos que procuro aplicar um martelo às situações. Não lhes colocar um espelho à frente, dar-lhes uma martelada. Vão por mim, sigam o meu conselho". E, socorrendo-se de uma saborosa metáfora culinária, revelaria o método: "Cozinho uma óptima galinha de churrasco com o meu próprio molho especial: manga, limão, alho e marinada de gengibre. É muito apreciada. Já muita gente me disse que deveria industrializá-la mas ainda não me acostumei à ideia. Cozinhar acaba por ser o mesmo que dirigir, arranjar e compor música. É a mesma psicologia de avaliar qual o ingrediente correcto, o que é compatível com o que se utilizou, quanto tempo deixar a apurar e quando voltar a mexer-lhe, se deve fritar-se ou cozer-se. A atitude é a mesma".
Ora, perdendo uma belíssima oportunidade para ficar calado, foi exactamente acerca de Swordfishtrombones que me pareceu bem fazer boquinhas à iguaria e, em modo enjoadinho, comentar: "Se é o primeiro álbum de que não pode dizer-se ser essencialmente idêntico a todos os outros (e essa fundamental permanência era — é? — um dos fascínios de Waits) não deixa, contudo, de ter a sua dedada suficientemente impressa. 'Johnsburg, Illinois', 'In The Neighborhood', 'Frank's Wild Years' ou 'Soldier's Things' poderiam figurar em qualquer uma das suas outras gravações. Porém, de um conjunto talvez excessivo de 15 faixas, emerge menos um álbum completo e acabado do que uma colecção de temas soltos e experiências instrumentais, ora eficazmente integrados no que parece ser uma quase tentativa de vaudeville, ora pura e simplesmente intrigantes e um tanto desarticulados". (segue para aqui)
19 November 2024
MEA MAXIMA CULPA (IV)
(publicado no nº 11 da "Granta")
(sequência daqui) Barbaridade seguinte: Tom Waits. O crime de difamação não terá sido da mesma gravidade mas, em contrapartida, desculpas, justificações e atenuantes eram totalmente inexistentes. Tratou-se tão só de um caso — sério, seríissimo — de vistas curtas. Ou melhor, de reles condicionamento auditivo. O ponto de partida não enfermava de nenhum defeito: Waits era caracterizado como "encarnando a imagem do boémio 'beat' à deriva, tão miticamente americano como, por exemplo, Springsteen. Mas, ainda que sendo ambos exactamente da mesma idade, a personagem-Waits é a de um Springsteen precocemente envelhecido a quem apenas resta meio pulmão em funcionamento, incapaz já de perder um segundo a pentear-se ao espelho retrovisor de um 69 Chevy ou de vibrar com as aventuras vertiginosas nos crepusculares 'highways' povoados de heróis em fuga". E, desenhando mais precisamente cenário e atmosfera, observava: "Entre um jazz de fundo de bar e uma omnipresente garrafa de Jack Daniel's, Tom Waits oscila de uma teologia particular ("You know there ain't no Devil, there's just God when he's drunk") a uma concepção de saúde muito pessoal ("I don't have a drinking problem except when I can't get a drink") conseguindo, por vezes, ser impagável e, talvez involuntariamente, cómico: poucos momentos conseguem fazer soltar uma gargalhada tão incontrolável como quando, em "Christmas Card From A Hooker in Minneapolis", a sua rosnadela trôpega de velho buldogue asmático inicia a recitação tartamudeando 'Hey Charley, I'm pregnant'" (segue para aqui)