11 June 2022


"Conheci a Paula Rego em Londres, quando para lá fui viver, em 1978, na qualidade de conselheiro cultural da nossa embaixada. Fui-lhe apresentado em casa do Helder Macedo. Logo me impressionaram muito o seu sorriso travesso, a quase intolerável amperagem dos seus olhos e a total despretensão da sua conversa. A Paula tornava-se rapidamente amistosa e recusava o jargão dos pseudo-cultos. Falava, com ironia mal velada, nos críticos de arte, que construíam grotescas catedrais de interpretação, à volta de soluções de pintura muito simples e muito óbvias. Em literatura, passa-se o mesmo, mas os críticos de arte refinam, neste delírio interpretativo. Ao longo da minha vida, conheci mais do que um pintor de nome que dizia gostar de ouvir opiniões sobre as suas obras, desde que não fossem opiniões de críticos de arte. Lembro-me de a Paula, que gentilmente me convidara a visitar o seu enorme estúdio, em Londres, me ter ali mostrado um seu quadro de enormes dimensões. Disse-me que quando concluíra aquela obra, notara que no canto inferior esquerdo, ficara um espaço em branco, que se tornou, para ela, irritante. Para obviar a isso, pintou lá uma figura de um animalzinho que me mostrou, comentando: 'Não imagina, Eugénio, as coisas delirantes que alguns críticos disseram do significado profundo deste animalzinho, que eu ali pusera só para encher espaço...'" (daqui)

5 comments:

Music lover said...

Pois é. As pessoas com talento não têm necessidade de "dar ar da sua importância. A Paula Rego, o Siza sempre tiveram um discurso coerente (uma obra indiscutível) sem presunção.

Perdoe-me a indiscrição, o Eugénio Lisboa é seu familiar?

João Lisboa said...

https://lishbuna.blogspot.com/2012/09/exmo.html

Music lover said...

Obrigado.
Belo texto sobre a Paula Rego.

Maldito P Coelho que em boa hora largou o poder. Nunca teve categoria para exercer o cargo

alexandra g. said...

<3

alexandra g. said...

P.S. - eu sei que já o escrevi, mas não me recordo quando foi, onde foi, mas sei que o fiz (na bloga). Quando trabalhava ainda com a carteira profissional (ainda existe :) de guia-intérprete, houve sempre esta constante (que, de resto, enunciei ainda no curso, apesar de ter que o fazer, por conta da avaliação :\\\\ ): jamais, diante de uma tela, abri a boca a não ser para referir o autor e a época/ano (quando 'disso' existia conhecimento). Sempre considerei que a pintura requer uma leitura individual, jamais o que "vem nos livros".

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(se pensarmos numa tela, digamos, contemporânea, então, ao silêncio juntaria uma ausência sobremaneira importante: uma água no bar, uma ida aos lavabos, you name it, mas jamais, e sublinho, o atendimento de uma chamada telefónica :)