15 September 2020

A BELEZA E A DESOLAÇÃO


As gentes comovem-se e mobilizam-se por ondas e por modas seguindo a frívola oferta do mercado mediático das “causas”. Terá sido por nunca haver integrado a agenda das “causas” prontas a inflamar redes sociais que foram necessárias quase três décadas para se reparar que, a poucas horas de voo do liberal Ocidente, na Bielorrússia, acoitava-se um jagunço da mais genuína estirpe estalinista. Note-se, entretanto, que a descoberta e identificação do tratante Lukashenko irá servir, agora, para continuar a manter longe das atenções o facto de, bastante mais para Leste, nas muitas repúblicas ex-soviéticas (a maioria das quais nem sabemos apontar no mapa), prosperarem outros tantos meliantes capazes de fazerem o “russo branco” parecer apenas um democrata com mau feitio. Caso, por exemplo, do Cazaquistão e do Uzbequistão, destroços da desmoronada URSS, em cuja herança negra se deverá incluir uma das maiores tragédias ambientais do planeta – raramente, porém, na ponta da língua dos frenesins activistas – perpetrada a sangue frio: a transformação quase completa do Mar de Aral, o quarto maior lago do mundo (68 000 km2), num deserto, o Aralkum, em consequência do desvio do curso dos rios que o alimentavam.



Galopante poluição fortemente tóxica, drásticas alterações climáticas, e a redução do grande lago a um cemitério de barcos de uma indústria piscatória devastada, foi o resultado do tremendo colapso de todo um ecossistema vítima de gloriosos “planos de desenvolvimento”, entre 1960 e a primeira década deste século. Aralkum, primeiro álbum da cazaque/britânica Galya Bisengalieva, é a evocação musical desse pavoroso desastre. Violinista de formação clássica, compositora e regente da London Contemporary Orchestra, que pôde já ser escutada em colaborações com Steve Reich, Laurie Spiegel, Suzanne Ciani, Radiohead, Frank Ocean, Terry Riley e Pauline Oliveros, Galya estruturou a peça em três secções - Pre-Disaster, Calamity e Future –, amplos e panorâmicos painéis sonoros de cordas e manipulações electrónicas, espraiados em avassaladores "drones", fulgurações de harmónicos e inquietantes pulsações abafadas. “Muita gente que nasceu naquela área nunca chegou a conhecer o Mar de Aral tal como era”, disse Bisengalieva à “Uncut”, “mas vive com as aldeias cobertas de areia e as casas destruidas dos antigos pescadores. O meu género de música convive bem com a imagem da esterilidade do deserto e a fluidez da água. O que desejo é conseguir viajar musicalmente entre a beleza e a desolação e inspirar uma reflexão acerca do impacto que podemos exercer sobre o ambiente e a vida humana”.

2 comments:

Maria said...

Triste, muito triste.
Só olhamos para o nosso quintal, e nem sequer o tratamos bem...
Mas como saber o que se passa no resto do mundo em termos de desastres ambientais?
Ah, mas de futebol sabemos tudo (basta ver alguns concursos que passam na tv), nisso somos mesmo uns autênticos "sabões" :-(

Obrigada, João.

Nuno Gonçalves said...

Numa Actuel da segunda metade dos anos 80 (87?88?), saiu uma reportagem sobre o mar de Aral. Nessa altura, em consequência das plantações de algodão, já estava reduzido a bem menos de metade e era uma morte anunciada...