17 December 2019

A CRIATURA DENTRO DELE


Não é todos os dias que se tem oportunidade para conversar com alguém que afirma descender de “34 reis indianos”, dá pelo nome de Ganesh Seshadri (“Jovem Deus da Cabeça de Elefante, Cavaleiro da Serpente Cósmica”, jura ele ser a tradução exacta) e que, após uma cirurgia que o salvou de um aneurisma cerebral, confessa-se habitado por uma criatura que, praticamente sem qualquer intervenção voluntária dele, lhe escreve as canções. Eis, pois, Bid, fundador dos míticos Monochrome Set, luminárias eruditas do pós-punk britânico, agora recém-autor do belíssimo Fabula Mendax, supostamente inspirado num manuscrito medieval de Armande de Pange, uma seguidora de Joana D’Arc. Ou talvez não. 

    Tenho de lhe dizer que procurei por Armande de Pange e pelo seu manuscrito em todas as frinchas da Web e não consegui descobrir nada... 
(risos) Não é possível encontrá-los na Internet. As pessoas que os possuem não desejam que eles estejam acessíveis. São pessoas idosas que não se importam que eu escreva canções inspiradas nesses manuscritos mas não tencionam revelá-los publicamente. Entre muitas outras coisas extraordinariamente interessantes, limitam-se a passá-los de geração em geração, no interior da família. (risos) 

    Segundo a lenda, teve acesso a eles através da sua mulher, originária de Metz, na Lorena... 
É verdade. Ela é de uma das mais antigas famílias de Metz. Possuem imensos livros antigos e manuscritos que não pretendem partilhar com o mundo exterior. (risos) No Oriente, esta é uma atitude muito comum. A minha própria família, na Índia, não tem Internet. Descendo de 34 reis mas não desejamos que isso esteja presente na Internet (risos) Na verdade, a história de Armande de Pange não é uma narrativa sequencial, está misturada com imensos detalhes aborrecidos, registos pessoais, de propriedades... Armande de Pange não é uma figura destacada dessa época. Ela partiu de Metz, suponho que dirigindo-se a Itália, e, ao passar por Nancy, ouviu falar de Joana D’Arc o que a fez encaminhar-se para Oeste, e ver-se envolvida na guerra. 



    Fui investigar e, na verdade, existe na Lorena, uma aldeia com o nome de Pange onde vivem actualmente 877 pessoas... 
Sim, mas o nome dela é, seguramente, um pseudónimo. “Armande” provém do alemão e significa “guerreiro” e Pange não passava de um castelo já em ruinas muito antes de ela ter passado por lá. Foi um nome de que ela se apropriou após ter fugido de Metz e os manuscritos nunca revelam qual seria o verdadeiro. Deveria vir de uma família nobre e ter tido uma boa educação uma vez que fazia citações em latim. Pelo caminho, procurou sempre evitar cidades grandes até ter chegado a Domrémy, o local de onde Joana D’Arc era originária. (risos) 

    Acha que é possível acreditar numa fábula que se auto-qualifica como “mendax” (mendaz, mentirosa)? 
Mas isso está no próprio manuscrito escrito por ela!...

    Ah, pronto...
É uma citação que ela faz de um poeta romano contemporâneo de César – não me recordo agora do nome dele... –, também cita Celso... não em grego mas em latim. 

    As suas Joana D’Arc e Armande de Pange vê-as mais como figuras dos filmes de Carl Dreyer ou de Luc Besson (com Milla Jovovich)? 
A verdade é que, no álbum, só há uma canção sobre Joana D’Arc – "La Chanson de la Pucelle" –, todas as outras são sobre Armande. Quando lemos manuscritos antigos (risos), não aspiramos o odor dos filmes modernos. As personagens parecem-nos normais mas não são, Joana D’Arc é louca! É muito difícil escrever sobre ela. O David Byrne compôs uma ópera sobre Joana D’Arc que é sobre tudo menos sobre ela. É uma personalidade completamente extrema, totalmente obcecada, que se imagina santificada e é seguida por imensa gente. 

    Vem tocar a Coimbra que tem uma das mais antigas universidades europeias fundada no século XIII e que, provavelmente, a Armande de Pange gostaria de ter frequentado... 
(risos) Gosto muito de Portugal e da Galiza. Há até um escritor galego, Alfonso Castelao, com uma escrita simultaneamente muito negra e suave que não me canso de recomendar. Sempre que viajo para esses lados, apetece-me permanecer alguns dias mas acabam por me marcar os voos de ida e volta sem espaço para isso, o que é uma pena. 



    Depois de Platinum Coils, após ter sobrevivido a um aneurisma, declarou que as canções não eram escritas por si mas pareciam escrever-se a elas mesmas vindas de uma fonte subconsciente qualquer... 
O aneurisma, realmente, libertou-me. Agora, não consigo parar de escrever. Não vem do subconsciente, não tem nada a ver com a consciência mas com uma outra entidade diferente dentro de mim. Não tenho nenhuma comunicação directa com ela. Quando aprendemos a conduzir, quando praticamos um desporto ou nos tornamos militares, até certo ponto, essas coisas apossam-se de nós. Mas isto é diferente: essa criatura é uma entidade criativa diferente que emerge através daquela parte do cérebro que lida com o pensamento lateral. Essa coisa dentro de mim, é capaz de pensar serenamente enquanto, por fora, eu tremo. Como quando estamos cercados por uma matilha de lobos e há uma parte de nós que tem de imaginar uma forma de lhes escapar. Não é, de todo, uma atitude consciente. Claro que posso aprender a lidar melhor com as palavras, a tocar guitarra melhor, mas, essencialmente, permito que as coisas fluam e vejo-as acontecer, vejo-me a compor. 

    Do ponto de vista especificamente musical, também se apercebeu de alguma transformação? O que tudo, verdadeiramente, significou foi que, agora, sou capaz de identificar a presença da criatura e sei como a atrair em vez de a suprimir. A criatura sente-se muito feliz por saber que irá ser libertada. 
     
    Deu algum nome a essa criatura? 
A coisa. A coisa dentro de mim. 



    Em "Summer of the Demon", começa num registo muito próximo de Jacques Brel e, a certa altura, passa para o de David Bowie... Terá acontecido um curto-circuito na “coisa”?... 
(risos) É possível... A minha voz, especialmente, ao vivo, é boa e nunca sei para onde poderá dirigir-se, o que não é um problema. Mas o que se passa com os Monochrome Set é que as pessoas nunca estão à espera de que nos pareçamos com nada, estão habituadas a que nos vamos transformando, o que também não é algo em que percamos muito tempo a pensar. 

    Faz questão de escrever com uma caneta de tinta permanente. Sente que isso é uma influència positiva no processo? 
A escrita flui muito melhor, muito naturalmente, nem preciso de pensar nisso. Com qualquer outra caneta... tenho de me esforçar. Mas também é necessário dizer-lhe que uso diversos tipos de tinta e de várias cores. Por isso, talvez exista alguma influência em consequência de estar a escrever com tinta azul, verde, vermelha ou lilás... Em viagem, não levo comigo as canetas de tinta permanente e ter de escrever com esferográficas é logo um esforço enorme. 

    Tem uma caligrafia bonita? 
(risos) Se quiser, posso ter. Se não, tenho apenas uma caligrafia normal.

1 comment:

alexandra g. said...

Se há cousa que abomino são entrevistas, mas esté, francamente, uma delícia :)

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(e foi tudo o que escutei, até aqui... :)