26 November 2019

AMOR, SEXO, CULPA, REDENÇÃO E ÊXTASE (I)
 

Nathan Bernard Cohen, um próspero judeu canadiano de origem polaca, dono de uma empresa de confecções dirigidas à classe média-alta, casara com Masha Klonitsky, judia lituana dezasseis anos mais nova, filha do rabi Solomon Klonitsky-Kline, pouco após a chegada dela a Montréal. Sete anos depois, em 1934, nascia Leonard Norman Cohen que cresceria com os pais e a irmã Esther no número 599 da Belmont Avenue, uma artéria do abastado bairro de Westmount, enclave anglo-canadiano e judeu-protestante numa cidade maioritariamente católica e francófona. Porém, em Janeiro de 1944, aos 52 anos, Nathan morreria precocemente. Leonard tinha 9 anos e os únicos objectos pertencentes ao pai que quis guardar para si foram uma navalha e o revólver que ele usara na tropa. Mas – tal como contaria mais tarde no seu primeiro romance transparentemente auto-biográfico, The Favorite Game (1963) –, a seguir ao funeral, esgueirou-se até ao quarto do pai e trouxe um dos laços dele que cortou com uma tesoura, tendo aí escondido um papelinho onde escreveu algo. No dia seguinte, escavou um buraco no terreno do jardim e, sob a neve, enterrou o laço. Pela primeira vez na vida, Leonard Cohen convertera a sua escrita num ritual. Décadas depois, à “People”, de Janeiro de 1980, diria que aquele fora o primeiro texto que escreveu na vida, embora confessasse não conseguir recordar-se do que escrevera: “Ando, há anos, a fazer buracos no jardim, à procura do papelinho. Talvez, afinal, seja só isso que eu faço: procuro aquele bilhete”.

Leonard e Masha
 
A história vem contada em I’m Your Man – A Vida de Leonard Cohen, a fundamental biografia de Sylvie Simmons de 2012, só agora traduzida em português, e que coincide com a publicação do álbum póstumo Thanks For The Dance e a exibição no Porto/Post/Doc Film & Media Festival de Marianne & Leonard – Words of Love, realizado por Nick Broomfield. Algumas páginas à frente, Simmons refere um outro episódio significativo: “No início da adolescência, Leonard interessou-se muito pelo hipnotismo. Adquiriu um livro de autor anónimo, ‘25 Lições de Hipnotismo/Como Tornar-se um Hipnotizador Exímio’, que abarcava ‘a Ciência da Terapia Magnética, da Telepatia, da Leitura da Mente, da Hipnose Mediúnica, do Mesmerismo, do Magnetismo Animal e de Outras Ciências Análogas’. Quis o acaso que Leonard posuisse um talento natural para o hipnotismo. Tendo obtido êxito imediato entre os animais domésticos, passou à criadagem, recrutando como sua primeira cobaia humana, a criada da casa. Obedecendo às suas ordens, a jovem sentou-se no sofá de cabedal. Leonard puxou uma cadeira para diante dela e, seguindo as instruções do manual, disse-lhe em voz baixa e suave que se descontraísse e o olhasse nos olhos. Pegando num lápis, moveu-o vagarosamente diante do rosto dela, para trás e para diante, até que conseguiu fazê-la mergulhar num estado de transe. Ignorando (ou, dependendo das interpretações) cumprindo as directrizes do autor, segundo as quais os seus ensinamentos deveriam ser usados somente para fins pedagógicos, ordenou à criada que se despisse. Quando se apercebeu de que não era fácil despertar a mulher, começou a entrar em pânico perante a perspectiva de a mãe entrar e os apanhar assim”.


Mas nem isso impediria que o narrador de The Favorite Game viesse a sublinhar: “Ele nunca vira uma mulher tão absolutamente nua... Sentiu-se estupefacto, feliz e assustado perante todas as autoridades espirituais do universo. Em seguida, recostou-se na cadeira e ficou a olhar. Eis ali o que tanto desejara ver. Não ficou desiludido. Nem então nem nunca desde aquele dia”. Numa entrevista à revista “Maclean’s” (1992), repetiria: “Não me parece que um homem alguma vez consiga superar a sua primeira visão de uma mulher nua. Creio que é Eva parada a olhá-lo de alto, é o alvorecer e o orvalho na pele. (...) Todas as tristes aventuras no campo da pornografia, do amor e das canções são meros passos no caminho que conduz aquela visão sagrada”. E, em "Memories" (de Death of a Ladies’ Man, 1977) – uma das quatro canções, com "Take This Longing", "Joan of Arc" e "The Jewels in Your Shoulder" – em que evoca as tentativas, em vão, de seduzir Nico, reencena a obsessão: “Frankie Lane, he was singing Jezebel, I pinned an Iron Cross to my lapel, I walked up to the tallest and the blondest girl, I said, look, you don't know me now but very soon you will, so won't you let me see your naked body?" Afinal, tudo aquilo em que, desde Let Us Compare Mythologies (1956) e Songs Of Leonard Cohen (1967) – primeira recolha de poemas e primeiro álbum –, iria infatigavelmente persistir: amor, sexo, culpa, redenção, morte, êxtase e condenação. Ou, como, em 1994, me diria, “A intoxicação pelo amor, a ideia de me render como um ébrio perante esse mistério, como no êxtase de Santa Teresa. Todos esses processos – cristãos, islâmicos, sufis, judaicos, tântricos – de união com Deus que passam por uma metáfora sexual, por uma embriaguês com o ser amado”. Traduzindo para "Love Calls You By Your Name" (de Songs of Love and Hate, 1971), a absoluta incapacidade para resistir à chamada: “Here, right here, between the birthmark and the stain, between the ocean and your open vein, between the snowman and the rain, once again, once again, love calls you by your name”. Todo o contrário do que, em “Ladies and Gentlemen... Mr. Leonard Cohen”, um programa de 1965 do National Film Board canadiano a ele dedicado, aludia ao falar dos residentes em Westmount, gente respeitável de fatos de bom corte e flor na lapela, que “sonha com sexo judaico e carreiras nos bancos”


A verdade é que, nunca tendo escondido as suas origens – “Quando apareci nos anos 60 já era mais velho, não tinha vergonha da minha educação. Não fingia que era da província. O meu pai era fabricante de roupas. Eu escrevia. Tinha um curso universitário” –, Leonard poderia muito bem ter sido um operário capaz. Tendo aceitado no final de 1956 um emprego temporário numa das empresas da família Cohen (a WR. Cuthbert & Cº, uma fundição de latão que o tio Lawrence dirigia), ao sair um ano depois, a carta de recomendação do director de pessoal, declarava: “Leonard Cohen esteve ao nosso serviço entre 12 de Dezembro de 1956 e 29 de Novembro de 1957, tendo desempenhado várias funções: operador de torno mecânico hidráulico vertical, operador de máquina de fundição em molde, assistente de analista de tempo e movimento. Enquanto aqui trabalhou, o Sr. Cohen mostrou ser honesto, competente e aplicado. Não hesitamos em recomendá-lo para qualquer emprego e lamentamos vê-lo abandonar a nossa empresa”. Seria, no entanto, a descoberta, num alfarrabista, dos poemas escolhidos de Garcia Lorca (em particular, "Gacela del Mercado Matutino") que, entre os 15 e os 16 anos, lhe traçaria para sempre o rumo: “Queria reagir aqueles poemas. Todos os poemas que nos comovem são como um chamamento que exige uma resposta, sentimos o desejo de reagir com a nossa própria história. Não dizia respeito somente ao meu coração mas a todos os corações humanos, e a solidão dissipou-se. Senti que era uma criatura amargurada no meio de um cosmos amargurado e que não havia nada de censurável na amargura. Não só não era censurável como era o modo certo de abraçar o Sol e a Lua” (diria, em 1993 a Arthur Kurzweil). Ia escutando Leadbelly, Woody Guthrie, flamenco, "border songs", fazendo a mão na guitarra, e, com o “bando da Côte Saint Luc”, do poeta, mestre e amigo (22 anos mais velho), Irving Layton, “estudávamos um poema até termos desvendado o respectivo código, até descobrirmos exactamente o que o autor estava a tentar dizer e como o dizia. Era assim a nossa vida, a nossa vida era a poesia” (“Les Inrockuptibles”, 1991). Quando, comemorando o 50º aniversário, Let Us Compare Mythologies foi reeditado em 2006, comentaria: “Há neste livrinho uns quantos poemas muito bons. Desde então foi sempre a descer”. (continua).

4 comments:

Music lover said...

Foi um dos meus livros de Verão (a versão inglesa) e posso dizer que praticamente só houve Cohen, nada mais.
Passei a ouvir o concerto da Ilha de Wight de uma forma diferente, muito melhor, claro.
Amor, sexo, culpa, redenção, morte, êxtase e condenação, e religião. Mas, talvez a religião seja tudo isto...

João Lisboa said...

"Mas, talvez a religião seja tudo isto"

As religiões são a pior forma de lidar com tudo isso.

Music lover said...

Mas metem-se em tudo isto e mais alguma coisa.

João Lisboa said...

São infecto-contagiosas. Há que fazer a vacinação.