29 May 2018

O CLÍMAX INFINITO


Como conta Stephen Greenblatt em The Rise And Fall Of Adam & Eve (2017), o mito do Grande Dílúvio que conhecemos do Génesis bíblico assenta sobre uma sequência de narrativas anteriores que foram sendo incorporadas umas nas outras: reproduz quase literalmente esse episódio do Épico de Gilgamesh sumério, o qual remete para o Atrahasis acádio que, por sua vez, decorrerá do Enuma Elish babilónico. Mas o que é especialmente interessante é que, nos dois últimos, o motivo para a ira divina que lança catástrofes sobre a Terra não é o mau comportamento, a imoralidade ou a desobediência: reproduzindo-se vertiginosamente, tanto os humanos (no Atrahasis) como os filhos dos deuses (no Enuma Elish) produziam um ruído ensurdecedor que impedia os deuses de dormir! No relato babilónico, porém, Ea – o mais inteligente filho de Apsu – evita o gesto destruidor do pai, matando-o. Observa Greenblatt: “No Enuma Elish, este homicídio primordial não suscitava horror nem condenação; era celebrado. A vida, com toda a sua energia e ruído, tinha triunfado sobre o sono e o silêncio”. E, referindo-se ao Atrahasis: “O ruído é uma característica humana como bem o sabe quem tenha vivido numa grande cidade. O mito de Atrahasis é particularmente apropriado para uma cultura urbana como a de Babilónia”



O grande emissor de ruído da Babilónia nova-iorquina foi Glenn Branca, morto no passado dia 13, aos 69 anos. “Tinha escutado Penderecki, Messiaen, Ligeti e o jazz dos anos 60, especialmente, Miles Davis. E queria pegar nisso tudo e colocá-lo num contexto rock. Mas desejava ir ainda mais longe. A minha verdadeira influência era o punk. Devo ter ouvido o primeiro álbum da Patti Smith 300 vezes”, confessou em 2016 à “Pitchfork”. No total, entre 1980 e 2011, gravaria cerca de duas dezenas de álbuns mas foi em The Ascension (1981) que aquilo que viria a ser designado por “escola totalista do pós-minimalismo” ficou estabelecido: quatro guitarras eléctricas, baixo e bateria – em 2001, pouco antes do 9/11, dirigiria uma orquestra de 100 guitarras na base do World Trade Center –, numa alucinante tempestade de sucessivos espasmos sonoros, segundo David Bowie, “um drone de monges budistas mas muito, muito, muito mais forte” ou “a resposta verdadeiramente radical e inteligente ao punk e à vanguarda: 'sturm und drang', clímax e que fazer para prolongar infinitamente esse climax”, como diria um dos seus alumni, Lee Ranaldo. Só na semana passada os deuses o silenciaram.

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