A TRILOGIA DE CHELSEA
Não é um desafio fácil tentar descobrir quem, após um primeiro álbum indiscutivelmente excelente mas ainda em busca de uma voz própria, tenha sido capaz de lhe fazer suceder, de imediato, uma trilogia de obras-primas. É um duro teste de esforço para a memória que, muito provávelmente, não encontrará senão uma resposta: Momus/Nicholas Currie e Circus Maximus (1986), The Poison Boyfriend (1987), Tender Pervert (1988) e Don’t Stop The Night (1989). Próximo disso – mas não exactamente coincidente – talvez só o tríptico inicial de Leonard Cohen, não por acaso, um dos "maîtres à penser" de Currie. O que é particularmente evidente (com um generoso suplemento de cinismo) em Circus Maximus que ele próprio descreveria como “Momus (na mal ajustada pele de um jovem universitário escocês) senta-se num quarto alugado de Streatham, no sul de Londres, a dedilhar uma guitarra acústica. Decide reescrever a Bíbia. Desafiando os seus antepassados fundamentalistas, pinta as vidas de santos do Antigo Testamento como Lot e João Baptista em nove tonalidades de vermelho-fogo-dos-infernos. Reemergem egocêntricos, lascivos e ávidos. Tratava-se, afinal, dos anos 80”.
À estreia na él Records, seguir-se-ia a passagem à Creation, de Alan McGee, não demasiado facilitada pela declaração de Currie segundo a qual Jacques Brel era infinitamente mais perigoso do que os Jesus & Mary Chain (então, a máquina de assalto da editora). Mas, por aí mesmo, entre Cohen, Brel, e, logo depois, Gainsbourg, se determinaria o itinerário futuro da “trilogia de Chelsea” – assim designada por ter sido concebida numa espelunca de Draycott Place, em Chelsea e agora reeditada pela Cherry Red sob o título Create 1 – Procreate –, suprema peça de literatura em formato canção e declinada em múltiplos registos. The Poison Boyfriend era, dizia o autor, “doce, triste e feminino” e deveria ser arrumado “juntamente com os álbuns de infelizes namoradas de rockers como Marianne Faithful ou Joni Mitchell”. Na verdade, uma amarga reflexão sobre a Inglaterra de Thatcher (“And the Age of Aquarius changed overnight to an Age of Economists serving the right”), a vacuidade social e a morte, muita morte. O golpe aprofunda-se em Tender Pervert – “God is a tender pervert and the angels are voyeurs” – venenoso concentrado de azedume, ironia e misantropia decantado por Mishima, Gide e os Pet Shop Boys, mas é em Don’t Stop The Night que se abrem as comportas para uma formidável e devassa orgia de jogos de sexo e poder, um imoralíssimo bordel onde desabrocham as mais aromáticas flores do mal. Irrepetível.
2 comments:
Reparo agora que o 'Poison Boyfriend' (música 8) já tratava do 'flame into being'. Nesse mister nada escapa a este tipo.
Também reparei nisso.
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