02 February 2017

ENTRE A ARTE MARCIAL E O TRANSE


Em 1998, Lula Pena publicou [Phados], espécie de bloco-notas deliberadamente errático de uma expedição interior sem bússola, cuja chave de decifração devia começar a ser procurada naquele “Ph” e nos parêntesis rectos de transcrição fonética. Passaram 12 anos até que chegasse Troubadour que, mais do que evocar a tradição dos poetas-músicos medievais, remetia para a raiz da palavra: trobar/trouver/encontrar. Agora, para Archivo Pittoresco, o tempo de espera encolheu, perigosamente, até quase metade. Se o próximo se manifestar em intervalo de tempo ainda mais curto, deveremos ver nisso um sinal do fim dos tempos?... 

    (risos) Eu própria estou a achar que há aqui um (in)terceiro álbum que surge a desafiar um bocadinho as lógicas naturais que se tinham instalado. Mas, na verdade, este é um reportório que não consegue habitar um disco. Precisa de um território para além do suporte CD que tem 70 minutos, no máximo. É como tentar aprender cem anos de lições numa só experiência. Porque é um reportório muito aberto, muito orgânico, muito livre, entre a arte marcial e o transe. Que só se sente à vontade nos concertos, numa difusão em tempo real, em streaming, ou na rádio. No entanto, no sistema em que vivemos, há que tirar uma fotografia que prove que está a acontecer qualquer coisa. Mas o reportório não está a gostar disso. 

    Como se faz, então, para se arrumar o universo dentro de uma caixa de chocolates? Como se ordena e estrutura algo de tão fluído? 
     Há muitos caminhos e muitas estruturas e há que optar por uma. E isso está aquém da produção. É como se fosse uma fotografia tirada ao acaso nesse processo. A minha ideia inicial era uma espécie de jogo da glória em que cada jogada decidisse um alinhamento. E que, se o disco fosse ouvido em "shuffle", tudo fizesse sentido. Claro que é uma ideia que precisaria de, pelo menos, quinze anos. 


    Poderia fazer-se isso mesmo mas a partir dos teus três álbuns? Ou cada um tem uma personalidade demasiado própria que o impossibilitaria? 
    No Archivo Pittorescho há uma especificidade que faz com que cresça por si só, auto-alimenta-se, tipo kefir. Primeiro, a afinação é em "open tuning", que não é necessariamente maior nem menor. E essa estranheza, essa espécie de funambulismo, é concretizada em tempo real. A própria afinação não tem de ser "standard", dos 442 hz. E apercebi-me muito da sensibilidade dos materiais, das cordas, da caixa e da relação íntima disso com o meu corpo. É a partir dessa microscopia que decido, em tempo real, por onde vou. 

    Se não fosse necessário levar em linha de conta prosaicas questões de sobrevivência, abdicarias de gravar CD? 
    Eu não gravaria este reportório. Deixá-lo-ia existir num terreno selvagem ou, então, faria outra coisa: gravava só a guitarra (o que foi uma opção que eu considerei muito no início, antes de a Crammed surgir com propostas indecentes) e, depois, só cantava em concertos. Mas tenho consciência de que ainda não sei fazer discos, preciso de conhecer bem as limitações e as vantagens que possam ter. 

    Ou seja, é uma tentativa de encontrar a solução para o problema de realizar um filme com uma máquina fotográfica... 
    ... como se fosse uma daquelas antigas fotonovelas... Acho importante, cada vez mais, a presença física, de uns com os outros, essa atenção de uns para os outros, criar um ritual com as pessoas. 


    Sempre tive a sensação de que, na tua música, o acompanhamento da guitarra, mais do que um acompanhamento instrumental convencional, funciona como uma espécie de estimulante auto-encantatório, para a criação de um "mood", de uma atmosfera, para a qual te fazes transportar... 
    É uma medicina e as medicinas alteram os estados. Eu não tinha essa consciência e fui-a ganhando ao longo de todos estes anos. E ainda bem que falaste nisso porque a guitarra é a protagonista deste reportório, a voz é quase só como uma chamada de atenção a pontuar essa viagem: “Agora, à vossa esquerda, estamos a passar por...” é um pouco isso. Isto, claro, pensado posteriormente. Daí as várias línguas, e essa tentativa de passar os limites de uma identidade que, desde sempre, também nunca me foi cómoda. 

    Pode dizer-se que se, em [Phados], existia aquilo a que poderia ainda chamar-se canções – era razoavelmente claro onde uma acabava e começava a outra –, agora, mais ainda do que em Troubadour onde isso começou a ser evidente, os contornos são bastante menos nítidos, é tudo muito mais difuso, mais impressionista, mais... 
    ... líquido, mais ondulante. Há umas semanas, um jornalista italiano escreveu que o álbum é um contínuo "stream of consciousness". Se calhar, é tudo mesmo assim. Nós é que, por alguma necessidade de controlo sobre a vida, imaginamos que tudo é linear, estamos sempre a recorrer ao passado e ao futuro. E, depois, nunca estamos no presente. Estar sempre neste presente, sem passado nem futuro, é assustador. Supomos que isto é tudo uma engenharia e que controlamos as coisas. 

    O teu processo de criação funciona um pouco como uma esponja que vai absorvendo o que ouves, o que vives, as coisas e as experiências em que tropeças... 
    Temos de ter consciência do ponto onde estamos, do lugar que ocupamos. Sou incapaz de não olhar para as coisas. Tudo são sinais. Tudo nos diz alguma coisa. Eu não gosto de alimentar narrativas e memórias da familiaridade, da herança, fui cortando raizes. Eu vou buscar as coisas num plano meio oracular, na atenção aos sinais que vão surgindo, no dar tempo às coisas. E, depois, elas acabam por ser a sua própria narrativa para a qual nós somos apenas um veículo. A forma racional com que nos habituámos a tomar decisões na vida não é aqui muito importante. 


    Em que medida é que a ideia da estética do “Pittoresco” do século XVIII, essa atitude que valorizava o excepcional, o exótico, se enquadra aí? 
    Foi um movimento pictórico que quebrou um pouco as regras e os cânones académicos, que obrigou a sair das quatro paredes e a explorar novos caminhos, um desafio ao olhar que, musicalmente, quis dirigir também para o ouvido. Nós criamos muitas expectativas, antecipamos muito, e os nossos gostos colam-se demasiado facilmente ao que nos é familiar. 

    E, inesperadamente, algures no meio desse labirinto, apareces com um álbum gravado para a histórica Crammed, do Marc Hollander... 
    Tinha tomado a decisão de publicar este reportório numa edição de autor, com total liberdade. A Crammed surgiu quendo fui à WOMEX, a Santiago de Compostela, em “peregrinação”, para pôr uma velinha à minha crença de gravar um disco. No "showcase", estava presente o Marc Hollander, da Crammed (por pura casualidade, ele raramente “vai aos mercados”). Quando se fala de um artista português, é inevitável que imediatamente se pense em fado – sobretudo, depois do matrimónio com a UNESCO –, é muito complicado ser-se outra coisa. E, por aí, o Marc, de início, não se mostrou especialmente interessado. Mas convenceram-no a ir espreitar. Creio que foi a minha abordagem à guitarra e o meu trabalho com a própria voz que o conquistaram. Chegámos a acordo no mesmo dia. Eu vivi na Bélgica há anos e a Crammed era uma referência (e ainda é), uma editora independente que tem quase 40 anos de existência. 

    Uma vez tomada a decisão de gravar o disco e de descobrir a forma possível de acomodar o reportório aos constrangimentos do CD, como decorreu o processo? Foi muito demorado? 
    Fiz várias tentativas, em vários contextos, de várias formas. Nenhuma delas me parecia revelar este reportório como representativo. Acabei por cair em mim e ter de escolher uma delas, não tanto pela qualidade da gravação mas por uma certa pulsação... Não é um álbum ao vivo, é um álbum vivo: de cerca de hora e meia no total, houve que editar, fazer alguns cortes, nem todas as línguas que foram usadas estão presentes, a ordem original foi também alterada. Aprendi muito. Apercebi-me, particularmente, de que, quanto mais eu queria domesticar o reportório, mais ele se tornava selvagem. 

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