01 December 2016

DEFINITIVAMENTE MAIOR


Eça de Queiroz estaria, talvez, a exagerar na caricatura quando, em 1867, escreveu que “Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito, Paris inventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa que criou? O fado (...) Tem uma orquestra de guitarras e uma iluminação de cigarros. A cena final é no hospital e na enxovia. O pano de fundo é uma mortalha”. Pinto de Carvalho/Tinop, na essencial – ainda que não exactamente rigorosa – História do Fado, de 1903, também não era demasiado amável: “O fadista, minado de taras, avariado pelas bebidas fortes e pelas moléstias secretas, com o estômago dispéptico, o sangue descraseado e os ossos esponjados pelo mercúrio - é um produto heteromorfo de todos os vícios, atinge a perfeição ideal do ignóbil”. E Fernando Lopes-Graça que – com Michel Giacometti – tanto investigou a música popular tradicional e nela se inspirou, tratava o fado como “canção incaracterística e bastarda”, “o execrando fado, produto de corrupção da sensibilidade artística e moral quando não indústria organizada e altamente lucrativa” (A Canção Popular Portuguesa, 1953). 


É verdade que as origens do fado (como as dos blues, do tango ou do rebético) têm um odor acentuadamente "lumpen" e, musicalmente, não era comparável com a imensa riqueza e respiração ampla da música tradicional. Mas, um século depois, Amália e Oulman, Camané e José Mário Branco, Cristina Branco e mais dois ou três, partindo dessa rudimentar matriz, transformaram-no em algo de definitivamente maior. E, agora sim, por vezes, indústria organizada e lucrativa. Gisela João, três anos depois da estreia homónima, em Nua, dá belíssimos sinais de desejar percorrer uma via próxima do imaculado percurso de Camané: rente à tradição mas, sem excessos de “produção” nem tiques de "crowd pleasing", pronta a, discreta e elegantemente, pisar o risco. E "Labirinto Ou Não Foi Nada", "Naufrágio", "Sombras do Passado" e uma sublime "Llorona" são exactamente aquilo a que se chama clássicos instantâneos.

4 comments:

Anonymous said...

Também gosto e dpois percebem -se logo as palavras que canta , sem ter que ir Ver a "letra " do fado.

Anonymous said...

Quando a ouvi em concerto há uns quatro anos não me agradou. Um discurso inculto, referências enxertadas à pressão, indiciando uma familiaridade que pela idade não pode ter com figuras do passado, uma espécie de complexo adâmico revertido e sem consistência, má compreensão das sílabas, com intromissão de preposições que destruiam a prosódia.

João Lisboa said...

O que é um "complexo adâmico revertido e sem consistência"?

Anonymous said...

Para clarificar, então:

Adão é o primeiro homem. Há em muitos dos que por cá andam o convencimento de que o mundo começou com eles. De que não houve um antes. De que são eles o primeiro Adão - o complexo adâmico.

A cantora tentava (o que é bom) reverter essa ideia de que fosse ela a primeira. Mas fazia-o metendo-se muito à pressão numa genealogia fadista, citando Amálias e Marceneiros, aqui e ali, como se fosse muito lá de casa. Um discurso plástico, sem consistência. De certo modo, uma simulação.

Ainda bem que terá melhorado. Não me ficou especial memória desse concerto.