18 November 2016

LIMPAR O PÓ AOS ARQUIVOS (XXXII)


Pergunte-se a Ennio Morricone o que gostaria de ter sido se não tivesse devotado toda a sua vida à música e, em particular, à música para o cinema e, sem pestanejar, em italiano (apesar de há décadas a trabalhar com Hollywood, ainda não fala inglês), ele responderá: "Campeão mundial de xadrês!". Não se trata apenas de um pormenor anedótico mas é, na verdade, uma forma de entrever o funcionamento interno do espírito do compositor que, desde 1961 (quando escreveu a sua primeira partitura para Il Federale de Luciano Salce), é responsável por mais de 400 bandas sonoras para cinema, para além de peças orquestrais, música de câmara e canções, produzidas a um ritmo que, por exemplo, só no ano de 1972, o conduziu a escrever para 22 filmes. Curiosamente, a despeito de quatro nomeações para os Óscares (Bugsy, Os Intocáveis, A Missão e Days Of Heaven), dois Globos de Oiro (The Legend Of 1900 e A Missão) e inúmeros outros prémios e nomeações, nunca a sua obra foi consagrada com um galardão da Academia de Hollywood.


Se foi o trabalho nos "western spagghetti" de Sergio Leone, durante os anos 60, que transformou Ennio Morricone num nome conhecido através das suas inovadoras justaposições sonoras de assobios surreais ("o assobio provém do corpo humano, é como uma voz, não é um efeito especial. É um som entre a voz e a flauta ou, talvez, o piccolo. E, uma vez que é humano, é natural. Não penso ter alguma vez usado quaisquer instrumentos extravagantes à excepção do orgão de igreja. Como ninguém o utilizava, era considerado um 'efeito especial'"), guitarras eléctricas distorcidas — ambos por Alessandro Alessandroni — ou a fantasmagórica voz de soprano de Edda Dell'Orso, este acabou por se tornar parte inseparável da febril recriação por Leone do género do "western" em filmes como O Bom, O Mau E O Vilão, Aconteceu No Oeste ou Por Um Punhado De Dólares. Porque Morricone nunca concebeu as suas partituras como algo que apenas se sobrepõe ou sublinha as imagens mas como música que se desenvolve organicamente a partir da narrativa do próprio filme, pegando em sons do quotidiano e carregando-os de simbolismo (o motivo de O Bom, O Mau E O Vilão inspirado no uivo do coiote, o ensurdecedor tique-taque do relógio na contagem descendente para o duelo em Por Um Punhado De Dólares) ou inserindo literalmente a banda sonora no corpo da narrativa quase enquanto uma outra personagem de parte inteira, caso do célebre "leitmotiv" de harmónica obsessivamente tocado por Charles Bronson (na verdade, Franco De Gemini) em Aconteceu No Oeste, de facto, todo rodado sobre a partitura de Morricone completada muito antes do início das filmagens. Porém, como ele próprio invariavelmente recorda, "dizer que apenas escrevi para 'westerns' é um erro crasso. Compus para cerca de 400 filmes e apenas 8% são 'westerns'".


Essa "especialização" começou em 1938 quando, aos dez anos, entrou para o Conservatório de Santa Cecília, em Roma, na classe de trompete de Umberto Semproni. Cinco anos depois, em seis meses, completaria um curso de Harmonia que tinha a duração normal de três anos e, numa fulgurante trajectória académica, estudaria composição, música e direcção coral, instrumentação e direcção de orquestra, acabando por se graduar em Composição na classe de Goffredo Petrassi com a classificação de 9,5/10. Após "fazer a mão" em diversas peças de câmara, ter passado pelo grupo de música experimental improvisada "Nuova Consonanza", pela música para teatro e pela orquestra da RAI, apareceram as primeiras solicitações para o cinema na época do pós-guerra, quando "a indústria cinematográfica era muito forte em Itália e o neo-realismo no cinema italiano era maravilhoso. Mas a música não era muito boa. Eu precisava de dinheiro e pensava que seria optimo escrever partituras para cinema mas nunca pedi trabalho a ninguém na indústria cinematográfica. Aconteceu então que um realizador me convidou e voltou a convidar muitas outras vezes. Por fim, as pessoas compreenderam que eu era bom e a minha carreira começou a desenvolver-se". A verdade é que, ironicamente, apesar de ele e Sergio Leone terem sido colegas na mesma escola aos 8 anos, só 25 anos depois, com Por Um Punhado De Dólares, a sua colaboração se iniciaria pouco depois de Morricone (que ia escrevendo sob pseudónimos como Dan Savio ou Leo Nichols), haver começado o seu percurso articulando o gosto pelo jazz e pela música popular com o rigor da vanguarda bebido nas raizes académicas.


Foi justamente a partir daí que, como confessa, a sua personalidade musical se desenvolveria: "Venho de uma escola de música experimental que combinava sons 'reais' com sons 'musicais'. Por isso, utilizei sons 'reais' para conferir um certo tipo de nostalgia que os filmes deveriam comunicar bem como de um ponto de vista psicológico. Não sei bem de onde me vieram essas ideias. Se calhar, foi só uma questão de aprender com a experiência e estar atento à vanguarda musical. Acabei por consolidar as minhas primeiras convicções acerca da música experimental e de vanguarda numa forma diferente de compor que leva em conta o que aconteceu na música dos últimos cinquenta anos e que procura comunicar com o público. De resto, tenho antigos amores e paixões musicais como Frescobaldi, Bach, Palestrina, o meu mestre Petrassi, Stravinsky, Boulez, Luciano Berio, Luigi Nono, Stockhausen... Comi-os, bebi-os, digeri-os e, evidentemente, entraram para o meu sistema, tornaram-se parte de mim, a minha carne e o meu sangue. Claro que ninguém dirá que a minha música se assemelha à de Stravinsky ou Bach. Mas também, se comermos frango, ninguém se lembra de dizer que nos transformámos em frango, pois não?".



É nesse desejo de comunicação e de procurar ser comprensível que se tem centrado a sua procura de um equilíbrio entre duas componentes "uma que não é banal nem trivial e outra que não procura ser excessivamente refinada", que é ainda uma outra forma de conciliação entre a natural ambição do compositor, os constrangimentos da indústria e as exigências do público: "O público e, muitas vezes, o realizador, exigem uma melodia, especialmente quando existem cenas muito expressivas que a requerem. Isso não significa que não possamos fazer um filme sem essa melodia mas o público parece esperar uma linha melódica sempre que surge uma expressão sentimental. Pessoalmente, passo bem sem um tema melódico. Em muitos casos, tenho tentado disfarçar o tema melódico pelo meio de pausas e silêncios e encorajado o público a identificar essas sensações sentimentais mais com um colorido musical do que com uma melodia. Infelizmente, o público parece insistir na necessidade de uma melodia".


Quarenta anos de experiência a escrever bandas sonoras para o cinema europeu e norte-americano conferem ainda a Ennio Morricone (um dos membros do seleccionadíssimo clube dos raros autores de "film music") a autoridade para dissertar e distribuir conselhos acerca do seu ofício: "Num filme, o trabalho tem de ser preciso e dirigido ao espectador. Demasiada meditação de natureza científica ou matemática na composição pode ser negativa. Com tempo excessivo, o compositor pode-se deixar levar pelo seu gosto e chegar a uma composição talvez a um nível demasiado superior ao de quem vê o filme. Se um realizador concede ao compositor dez segundos, ele não pode ser ouvido e, portanto, não pode colaborar com o realizador. Contudo, se o realizador, lhe concede dez minutos, o compositor pode exprimir-se adequadamente. Se os dez minutos que lhe foram oferecidos puderem ser ouvidos e não forem afogados pelos diálogos ou por efeitos especiais, então a música será apreciada". E, porque — à excepção de Era Uma Vez No Oeste — não é todos os dias que lhe é oferecida a possibilidade de ser a música a condicionar o tempo e o modo da narrativa, é indispensável inverter adequadamente as regras: "Preciso de ver a montagem final de um filme antes de sequer começar a pensar na música e, muito menos, em escrevê-la. Depois de ver o filme, digo ao realizador aquilo que penso e o que gostaria de fazer. Ele aceita o que eu digo, discute-o ou destrói-o. Eventualmente, chegamos a um compromisso. Se o realizador não for musicalmente criativo, imagina sempre alguma coisa que já ouviu e, aí, eu tenho de o convencer a pôr as suas ideias de lado. Preciso de ter confiança no realizador e ele tem de ter confiança em mim".


Naturalmente, esta atitude tem consequências inevitáveis. Tanto de conflito (como quando, em 1975, Pier Paolo Pasolini o convidou para reescrever os arranjos da banda sonora de Saló ou os 120 Dias de Sodoma; Morricone não gostou da música sobre a qual deveria trabalhar e Pasolini não queria mostrar-lhe a totalidade do filme com receio de que ele o detestasse e abandonasse o projecto) como de empatia imediata: "Brian De Palma é extraordinário! Respeita a música e os compositores. Para Os Intocáveis, tudo o que lhe propus estava bem mas, depois, pediu-me uma música com que eu não não concordava de todo. Era algo que não me apetecia escrever — uma peça triunfal para a polícia. Creio ter escrito nove versões diferentes mas disse-lhe 'Por favor, não escolha a sétima' que era a de que eu gostava menos. E foi essa mesma que ele escolheu! Por acaso, até fica muito bem no filme...". (2001) (ver também aqui e aqui)

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