21 January 2016

AQUELAS IDEIAS IMPERFEITAS 


Nos primeiros minutos de The Ties That Bind – o documentário de Thom Zimny incluído na reedição de The River –, Bruce Springsteen dedilha distraidamente a guitarra enquanto, de olhos baixos, procura reencontrar o fio à meada das perguntas que o realizador lhe dirige. E, com algum visível esforço para evocar uma história de há três décadas e meia, junta ideias e palavras: “Quando cheguei aos 30 anos, comecei a reflectir sobre as coisas que mantêm a sociedade unida, aquelas ideias imperfeitas acerca do modo como as pessoas se relacionam umas com as outras. Queria fazer parte disso, não me limitar a estar do lado de fora a observar e a ser um comentador ou um elemento do público, desejava participar. Os laços que nos unem – ‘the ties that bind’ – como é que essas coisas acontecem? Como é que as pessoas se juntam e separam? Queria participar desse jogo. Até aí, nunca tinha tido coragem para o fazer. Ou tinha-o tentado e falhado tão rapidamente que não resultavam. A tarefa de alguém que escreve é também escavar um pouco esses mistérios. Em boa medida, The River foi a minha tentativa de descobrir a coragem para saltar a pés juntos sobre essa experiência pessoal”. E, mais adiante, acrescenta: “Se não conseguisse estabelecer esses laços, ou desaparecia ou me perdia... uma vida criativa, uma vida imaginada não é uma vida”.



Há seis anos, durante uma actuação no Madison Square Garden em que interpretou The River na totalidade, explicara que esse álbum tinha sido a porta de acesso a toda a sua escrita seguinte: “Inclui canções que abriram caminho para álbuns posteriores inteiros: ‘The River’ deu origem a Nebraska, ‘Stolen Car’ conduziu a Tunnel Of Love. Era para ser um álbum simples mas apercebi-me que, nesse formato, não dispunha de espaço suficiente para capturar os temas sobre os quais tinha começado a escrever em Darkness On The Edge Of Town, não queria abandonar aquelas personagens”. Não as abandonou. Agora, mais velhas, mais desesperadamente adultas, mais criaturas de Steinbeck do que de Kerouac, o que se reflectia na própria matéria musical: “Queria ir em frente mas, curiosamente, inspirava-me em coisas muito mais antigas do que o rock: a country clássica e gente como Roy Acuff, Johnny Cash, George Jones, Tammy Wynette, uma música rural e de pequenas cidades mas com preocupações adultas”.



A começar pela própria "The River" (“I come from down in the valley, where, mister, when you're young they bring you up to do like your daddy done”) em que as personagens não poderiam ser mais reais: a irmã, Virginia e o cunhado, Mike, protagonistas de uma história de “tempos de recessão, tempos difíceis na América” (”I got a job working construction for the Johnstown Company but lately there ain't been much work on account of the economy”), cenário de maldição e ameaça (“Now those memories come back to haunt me, they haunt me like a curse, is a dream a lie if it don't come true or is it something worse?”). Na realidade, houve um primeiro album simples gravado, em 1979, no estúdio Power Station, de Nova Iorque, e nos Telegraph Hill Studios – de facto, um celeiro reconvertido numa quinta de Springsteen, na Telegraph Hill Road, em Holmdel, New Jersey –, The Ties That Bind, que acabaria por nunca ser publicado mas de cujo total de 10 canções, 7 haveriam de ser incluídas em The River, finalmente editado em Outubro de 1980.



No actual "box set" (4CD, 3DVD, o fac-símile de um caderno escolar com textos de canções dactilografados e manuscritos e um livro/"scrapbook" com ensaios de Mikal Gilmore e Bruce), The Ties That Bind: The River Collection, coexistem ambas as versões mas o verdadeiro cofre do tesouro é o quarto CD com as 22 "outtakes" das sessões de estúdio. Embora metade dessas faixas já tivesse sido revelada nas anteriores compilações Tracks (1998) e The Essential Bruce Springsteen (2003), nas 11 restantes – praticamente, um outro álbum inteiro – podem descobrir-se preciosidades (“The Man Who Got Away”, “Night Fire”, “The Time That Never Was”, “Stray Bullet”) que, um dia, Springsteen ainda deverá explicar por que motivo deixou a ganhar pó nos arquivos durante todos estes anos. Igualmente valiosos são os 3 DVD com o documentário de Thom Zimny, os River Tour Rehearsals e as 25 canções do concerto de 5 de Novembro de 1980, na State University de Tempe, no Arizona.



Na véspera, Ronald Reagan havia sido eleito para a presidência dos EUA. Em palco, Bruce Springsteen imobiliza-se, por instantes, em silêncio, e, a seguir, dirige-se ao público: “Não sei bem o que vocês pensam acerca do que, ontem à noite, aconteceu. Mas, a mim, parece-me bastante assustador. Vocês são jovens e irá haver muita gente que dependerá de vós. Por isso, esta canção é para vocês”. E lança-se violentamente sobre "Badlands" (“Baby, I got my facts learned real good right now, you better get it straight, darlin', poor man wanna be rich, rich man wanna be king, and a king ain't satisfied, 'til he rules everything, I wanna go out tonight, I wanna spit in the face of these badlands, you gotta live it everyday, let the broken hearts stand as the price you've gotta pay, we'll keep pushin' 'til it's understood, and these badlands start treating us good”) numa versão perigosamente incendiária.

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