17 December 2014

SEM CERIMÓNIAS 


Pablo Casals dizia que “o amor que temos pelo nosso país é uma coisa esplêndida. Mas porque não poderá esse amor passar a fronteira?” e Einstein acrescentava que “o patriotismo é uma doença infantil, o sarampo da humanidade”. Foi (também) assente em generosas convicções desse género que projectos como o da União Europeia emergiram apesar de, já em 1979, o ex-embaixador britânico em Lisboa, Sir Archibald Ross, numa comemoração dos 25 anos de intercâmbio cultural entre Portugal e o Reino Unido, ter recordado um dos persistentes argumentos eurocépticos: “Para quê aproximar as pessoas, se é sabido que, quanto mais se conhecem, mais se odeiam?” Uma das invenções que, particularmente no âmbito do cinema, mais contribuiu para fazer torcer o nariz ao europeísmo, foi o justamente mal afamado “europudim”, essa receita de transnacionalidade por encomenda que consiste em juntar um realizador eslovaco com um argumentista lituano, colocar-lhes à disposição um catálogo de actores e técnicos das outras 26 nacionalidades e sugerir-lhes que vão rodar na Transilvânia um épico sobre as campanhas napoleónicas. 



Não é, por isso, má vontade o motivo que leva a olhar, instintivamente, de esguelha um álbum que reúne 11 músicos da Grécia, Itália, Portugal, Estónia e Espanha, num “projecto cooperativo entre várias instituições culturais europeias”, com o objectivo de abater fronteiras e celebrar o diálogo entre as músicas tradicionais dos respectivos países. Afinal, todo o resto corresse tão bem na Europa como sucedeu em Folk Music In Museums – Young Musicians And Old Stories e não se associe aos “museus” a ideia de fósseis religiosamente preservados porque o que aqui se descobre é exactamente o contrário: a gloriosa promiscuidade que enrola “tammurriatas” com marchas catalãs, paganismos mirandeses e estónios, a total ausência de cerimónia na coabitação de melodias das Cíclades com “sardanas” tingidas de flamenco, a obscena naturalidade do convívio entre desbragamentos de taberna, virgens curandeiras e pescadores contrabandistas de haxixe, e o fogo de artifício tímbrico (teppo lööts, tsambouna, torupil, gralla – ataquem os dicionários!) não poderiam ser mais diferentes das hirtas folhas de Excel de qualquer Pacto de Estabilidade e Crescimento. 

4 comments:

Nuno Gonçalves said...

Pelo que tenho percebido, e utilizando uma terminologia braudeliana (LOL), a sua atenção musical é cada vez mais virada para a conjuntura (e até a estrutura), e cada vez menos para os simples factos (como as edições discográficas); apesar de tudo ... chegou a ouvir o último disco de My Brightest Diamond? :-)

João Lisboa said...

"a sua atenção musical é cada vez mais virada para a conjuntura (e até a estrutura)"

... as coisas que eu faço sem dar por isso... :-)

Ouvi My Brightest Diamond, ouvi. E não fiquei demasiado deslumbrado. Pode ser que ainda "cresça".

Nuno Gonçalves said...

Não era uma crítica :-)
Eu vi-a/os em concerto em Setembro e gostei muito, mas ainda não ouvi o disco e estou a pensar oferecê-lo. Obrigado!

Ana Cristina Leonardo said...

o empirismo inglês foi um grande avanço filosófico :)