01 May 2014

A TRANSPARÊNCIA DAS FORMIGAS 


Gravado em Londres no final de 1974 mas só publicado em 1975, Coro dos Tribunais foi o primeiro álbum de José Afonso surgido após o 25 de Abril. A última estrofe da canção-título era profética – “Se o criminoso se escondeu, nada de novo aconteceu, a recompensa ao punho que matou, uma fortuna a quem roubou, guarda o teu roubo guarda-o bem, dentro de um papel a lei” – mas, para o que, agora, importa, foi ao tema que o encerra, "A Presença das Formigas", que um grupo de gente dada às músicas tradicionais e muito mais coisas à volta pediu de empréstimo o nome. Assenta-lhes bem não só pela declaração de princípios final do texto (“Liberdade, liberdade, quem disse que era mentira, quero-te mais do que à morte, quero-te mais do que à vida”) como pela surreal passagem secreta que a ela conduz: “A presença das formigas nesta oficina caseira, a regra de três composta às tantas da madrugada, Maria que eu tanto prezo e por modéstia me ama, a longa noite de insónia, às voltas na mesma cama.”.



Porque, logo desde o óptimo disco de estreia, Ciclorama (2011), a matriz da música do grupo era também um pouco essa via de entrada e saída constantes de lugares reconhecíveis para outros menos prováveis, algures entre raízes aprumadas locais e rizomas transnacionais, duas ou três vénias aos cantautores clássicos e várias outras a gente menos facilmente detectável, dos Gaiteiros aos Gentle Giant e Jethro Tull. Pé de Vento, por acaso ou não, editado no 40º aniversário do momento – mais mês, menos mês – em que "A Presença das Formigas", possivelmente, estaria a ser escrita, mantém a banda no mesmo perímetro estético mas, de modo algo inesperado, parece aproximá-la mais das suas fontes do que antes: a circulação das correntes atmosféricas entre Europa do Oeste e Mediterrâneo permanece intensa, os vestígios da proximidade do Norte de África são residuais mas não irrelevantes e o fado não desapareceu do radar. Porém, à transparência, com muito maior nitidez do que em Ciclorama, aparecem claramente recortadas as figuras de Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias (particularmente este, também produtor do álbum de Afonso) ou, sejamos justos, Fausto Godinho e Sérgio Bordalo Dias. É bonito e correcto saudar os mestres mas, à primeira tentativa, a homenagem era desejavelmente mais implícita.

No comments: