BESTIÁRIO
Dêem-lhe corda e, enquanto tiver fôlego,
Tom Waits é capaz de, interminavelmente, debitar nacos de improvável sabedoria
sobre o mundo animal: "Sabia que se deitar uma gota de álcool em cima de
um escorpião, ele enlouquece e pica-se até morrer? E sabia que as moscas só
vivem duas semanas? Eis uma coisa a ter em conta quando matamos moscas. Serão
velhas? Terão acabado de nascer? E sabia que os mosquitos preferem as crianças
aos adultos e as loiras às morenas? Não sei se são capazes de distinguir as
loiras naturais das outras mas acredito que alguns já devem ter sido capazes de
evoluir até esse ponto. E as formigas espreguiçam-se quando acordam (já foram
vistas a fazê-lo ao microscópio!) e também bocejam. E, depois do trabalho, vão
a uns barzinhos pequeninos onde bebem um néctar que as põe um bocadinho tontas.
Só para acabar (não o quero maçar com mais histórias destas), os mosquitos são
mais atraidos pelo azul do que por qualquer outra cor. O que quer dizer que,
nos trópicos, convém usar camisas vermelhas”. Brett e Rennie Sparks (aka The Handsome Family) não costumam fazer
o mesmo mas o seu último álbum, Wilderness, reúne uma dúzia de canções em que
o título de cada uma é o nome de um animal (“Flies", "Frogs", "Octopus", "Lizard"...). Não se trata, contudo, de ampliar a outras espécies o subgénero
da folk-entomológica inaugurado por Mirah em Share This Place (2007).
Deles – sobre quem Greil
Marcus afirmou “O seu surrealismo do quotidiano não tem paralelo na escrita de
canções contemporânea” – ninguém espera algo de tão confortável: durante os já
vinte anos de percurso desde que o ex-cristão "born again" estudioso de música medieval e a
ex-"acid head"
adolescente que acredita ter sido Hildegard von Bingen a maior "songwriter"
de sempre se encontraram (quando ela lhe entregou um cartão com manchas de
sangue e uma citação de Thomas Pynchon), habituaram-nos a patinar sobre aquele
terreno escorregadio em que Flannery O’Connor reescreve os pesadelos de Kafka
e, algures entre o gótico sulista e a devoção pelos Beatles, o imprevisível
equilíbrio se descobre. Desta vez, porém, talvez seja mais apropriado falar de
um universo filmado, em simultâneo, por dois David (Lynch e Attenborough) com texto e
música de Hank Williams e Edgar Allan Poe: o que o "bear hug" com que o barítono
profundo de Brett nos envolve vai narrando são a gastronómica beleza do cadáver
do general Custer tal como as moscas o viram nas pradarias de Montana (“there’s
a Wal-Mart now where once the grizzlies roamed”), a história de Mary Sweeney, a
louca do Wisconsin, que, em 1896, se aplicava a estilhaçar vidros de janelas
(“She was a woodpecker, she couldn’t help but free all the things that hide
inside all the pretty trees”) ou a daquela outra mulher que, atingida por um
raio, acaba aprisionada num casulo tecido por lagartas (“Keeping time with
every rumble, every quiver of the earth, and she slowly changes shape with the
turning of the world”). Em matéria de folk "noir"
vertida no registo de bestiário sobrenatural assombrado pelo espectro das "murder ballads", durante muito tempo, não
irá haver melhor.
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