12 January 2013

ALGURES NA HIPÓFISE



A 13 de Maio de 1973, preso pela PIDE numa cela de isolamento do forte de Caxias, José Afonso escrevia à companheira, Zélia: “Com a devida vénia me reporto junto do tampo de mármore, meu secretário tão certo. Desde quando deixara eu de ouvir esta palavra? Logrei substitui-la numa manhã óptima mas não esta em que a mola salta reprimida sabe-se lá donde, algures na hipófise. (...) Na laje sobre a qual o papel branco me obedece sem que o habitem outros sinais, pequeninos veios avolumam-se em áreas mais densas, configurando pássaros de porcelana chinesa. Afundo-me neste fundo para descobrir-lhes um sentido branco, amarelo, de novo branco, cada centímetro um fuso de seres minúsculos, buscando reorganizar-se, perder-se, reagrupar-se”. Não, José Afonso não enviava nenhuma mensagem encriptada nem alucinava fruto da tortura do sono a que não foi submetido. Durante as três semanas de detenção, nem sequer fora agredido fisicamente, acabando por ser posto em liberdade por falta de “elementos indiciários suficientemente comprovativos de que tivesse atentado contra a segurança do Estado”.


Simplesmente, ele escrevia assim mesmo e, se em muitas das suas canções, o sentido de denúncia era francamente mais explícito, em inúmeras outras, obrigava-se (e obrigava quem o escutava ou lia) a deixar-se arrastar pelo jogo de livre associação de palavras e ideias, procedimento tão canonicamente surrealista como popular: “É uma espécie de exorcismos ou evocações de vivências populares, com termos e vocábulos que já não existem e que me reportam a uma certa saudade de aspectos de uma vida comunitária que, agora, me ultrapassa, (...) uma espécie de estado de semiconsciência em que as palavras vêm à superfície, desligadas de qualquer necessidade lógica”. Hoje, poderá não ser fácil de acreditar mas, por causa disso, o lendário herói de "Grândola" – senha e logo sonoro da revolução –, o consensual fundador da nova música popular portuguesa, antes e depois do 25 de Abril, na fase mais radicalizada do PREC, foi asperamente acusado de “poetismo”, “hermetismo” e de “não compreender a função da música na vida das massas” (enquanto, simétrica e paradoxalmente, outros lhe reprovavam o “panfletarismo”). A verdade é que, a despeito de todos os preconceitos e ideias feitas, como aponta Irene Flunser Pimentel na Fotobiografia de José Afonso (Temas & Debates, 2009), “numa estatística efectuada às suas gravações, menos de um terço foram ‘canções de intervenção’, sendo as restantes de carácter lírico ou folclórico”


É todo esse percurso que poderá ser, agora, revisto e reavaliado, através da reedição pela Orfeu da discografia, em álbum, de Afonso: já disponíveis – com restauro sonoro e remasterização digital de António Pinheiro da Silva, a partir das matrizes originais  – encontram-se Cantares do Andarilho (1968), Contos Velhos Rumos Novos (1969), Traz Outro Amigo Também (1970), Cantigas do Maio (1971), Eu Vou Ser Como a Toupeira (1972), Venham Mais Cinco (1973), Coro dos Tribunais (1974), Com as Minhas Tamanquinhas (1976), devendo, entre Março e Abril de 2013, ser publicados os últimos três álbuns: Enquanto Há Força (1978), Fura Fura (1979) e Fados de Coimbra (1981) – ficando apenas de fora Como Se Fora Seu Filho (1983) e Galinhas do Mato (1985), à época editados, respectivamente, pela Sassetti e Transmedia. Cortando com a fase formativa anterior dos fados e baladas coimbrãs, Cantares do Andarilho (acompanhado por Rui Pato) dá início à individualização criativa de Afonso que, na etapa seguinte, Contos Velhos Rumos Novos, introduzindo bombo, cavaquinho, harmónica, marimba, reco-reco e lampião chinês, assinalaria, segundo o próprio, a despedida da “choradeira das baladas” e funcionaria como trampolim para o período mais rico da sua discografia, entre 1970 e 1974: o de Traz Outro Amigo Também, Eu Vou Ser Como A Toupeira e Venham Mais Cinco, mas, acima de todos, o extraordinário Cantigas do Maio, que, com José Mário Branco como director musical e “advogado da música”, fez questão de concretizar com clareza e nitidez que “uma canção não é apenas música mais palavras mas, sim, algo de novo que resulta desse encontro”.


Numa época em que a canção popular se desejava como pouco mais do que um cartaz, uma pichagem ou uma palavra de ordem revolucionários, algo de funcional ao serviço de uma agenda política, afirmar (como Afonso o fez à “Capital”) que a “canção de protesto” se estava “a transformar num bem de consumo e num álibi de consciências” e procurar elevá-la ao mesmo patamar artístico para que, na mesma altura, apontavam Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho, e Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades, de Mário Branco, não era o tipo de declaração que caísse bem na ortodoxia. Mas, daí em diante, convocando os mais diversos tipos de referências que, de certo modo, antecipavam a ideia de "world music", e chamando a si poetas e músicos como Grabato Dias, Pessoa, Fausto e Júlio Pereira, mesmo que persistentemente empenhada no combate político, a música de José Afonso nunca mais seria a mesma.

No comments: