07 May 2012

DIGESTÕES


















Walter Benjamin - The Imaginary Life Of Rosemary And Me


















Laia - Sogra

Na edição online do “Diário de Notícias”, um vídeo assalta-nos com a trepidante notícia de que “o espírito 'Swinging London' dos anos 60 é o que está a dar na moda deste Verão”. Nem me atrevo já a voltar a propor a leitura de Retromania, de Simon Reynolds, não vá isso desencadear a fúria dos deuses e ficar, por toda a eternidade, impossibilitado de escrever as aterradoras cinco sílabas. Mas talvez valesse a pena tentar fazer umas continhas rápidas para averiguar quantas vezes, nas últimas quatro décadas, os anos 60 já regressaram. Não chegaria, porém, a ter tempo para tal, porque logo The Imaginary Life Of Rosemary And Me me cai nas mãos, com informação complementar segundo a qual o seu autor, Luís Nunes – "nom de plume", Walter Benjamin –, submerso pela colecção de discos dos pais aos dezasseis anos, transformou-a numa espécie de dieta rigorosa, passando, daí em diante, a alimentar-se exclusivamente de Beatles, Beach Boys, Dylan, Neil Young e mais uns quantos daquela época que o “DN” assegura ter, qual zombie pascal, ressuscitado de novo. O gastrónomo Brillat-Savarin não podia estar mais certo quando, há duzentos anos, afirmava “diz-me o que comes e dir-te-ei quem és” – frase que os mansos militantes do tofu e do seitan da tal era que tomará conta dos trapinhos estivais traduziram para “you are what you eat”. Mas há digestões e digestões. É que, se, tal como diz Ennio Morricone a propósito dos compositores que o influenciaram, “Comi-os, bebi-os, digeri-os e, evidentemente, entraram para o meu sistema, tornaram-se parte de mim, a minha carne e o meu sangue. Claro que ninguém dirá que a minha música se assemelha à de Stravinsky ou Bach. Mas também, se comermos frango, ninguém se lembra de dizer que nos transformámos em frango, pois não?", o problema reside, justamente, nos casos em que o aparecimento demasiado evidente de bico, penas e asas se torna realmente embaraçoso. 


Há que ser justo e reconhecer que o galináceo em cujo corpo Walter/Luís, qual Gregor Samsa, se descobriu, uma manhã, ao acordar, é um belíssimo e saudável espécime, seguramente de criação biológica, e que tem pouco ou nada a ver com os seus pobres irmãos, desumanamente engordados naqueles aviários que a União Europeia amaldiçoa. E que soube rodear-se de óptimos cúmplices – Márcia, Francisca Cortesão, João Paulo Feliciano, Rafael Toral, gente dos Julie & The Carjackers – para a edificação de um volátil objecto pop capaz de circular sem atrito entre tímpanos. Mas quem decidiu chamar-se Walter Benjamin deveria ter-se recordado daquela famosa Tese IX Sobre A Filosofia da História (de que Laurie Anderson também se socorreu em "The Dream Before") em que outra entidade alada, “o anjo da História”, volta o rosto para o passado e “a cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já as não consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval”


Já com os Laia as coisas acontecem de forma bem diferente: foram eles mesmos quem provocou o vendaval que, primeiro só uma pequena ventania (Viva Jesus E Mais Alguém, 2010) e, agora, em regime de tempestade desabrida, leva tudo à frente. Do duo original, cresceram até quinteto, arrastaram atrás Pedro Gonçalves (contrabaixo, Dead Combo) e Ricardo Parreira (guitarra portuguesa) e, por entre, ciclones de guitarras eléctricas – tal como o Instituto de Meteorologia Mogwai os identificou, em fuga do centro de altas pressões MBV –, polifonias corais das terras altas de Minho e Beiras, pulsação rítmica de placas tectónicas em fúria e compassos esfarrapados de canções de Fausto ("Lembra-me Um Sonho Lindo"), criam o que, ainda que totalmente distinto, só terá equivalente nessa outra singularidade de nome O Sexto Sentido, da Sétima Legião. Magnífica terra de (quase) ninguém, desbravada e reinventada de acordo com o lema, rigorosamente seguido, “partir de algo tradicional, com regras definidas, tentar desmanchá-lo e trazê-lo para a nossa linguagem”.

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