26 April 2012

FRACTURA ESQUIZÓIDE 



No programa da secção IndieMusic da actual edição do IndieLisboa, existe uma espécie de fractura esquizofrénica entre filmes – mais ou menos valiosos – que justificam a sua inclusão num acontecimento que ocorre apenas uma vez por ano e aqueles cuja selecção dificilmente se compreende e permite afirmar que, muito provavelmente, usurparam vagas preciosas que outros mereceriam muito mais. Grandma Lo-Fi: The Basement Tapes of Sigrídur Níelsdóttir, de Orri Jónsson, Kristín Björk Kristjánsdóttir e Ingibjörg Birgisdóttir (2011), é, de certeza, um óptimo exemplo de como o conceito "indie", conduzido às últimas consequências de celebração da excentricidade por nenhum motivo razoável, pode descambar facilmente para a mais patética infantilização: Sigrídur, simpática personagem de anciã islandesa de origem dinamarquesa, começou uma carreira musical aos 70 anos (morreria, no ano passado, com 81). Na cozinha, com um teclado rudimentar, melódicas, harmónicas, jogos de sinos, xilofones e objectos avulsos vários, inventava canções (respeitemos a memória da senhora...) "naïves", a que colava ruídos de passarinhos, do vento ou da água. Publicou cerca de cinco dezenas de cassetes e CD e, pela extravagância da coisa, aparentemente, tornou-se uma pequena celebridade local. Mas, de matéria para nota de rodapé em suplementos de curiosidades, eis que, no filme (decorativamente “enriquecido” com animações também convenientemente ingénuas), a vemos erigida em ícone simultâneo do minimalismo lo-fi – com citações de John Cage e tudo – e do combate contra a perversidade das editoras.



Atitude idêntica preside a How To Act Bad (Dima Dubson, 2011), exercício de insalubre voyeurismo próprio da latrina estética dos "reality shows", que caninamente persegue e gostosamente exibe a indigente disfuncionalidade de Adam Green (misto de Daniel Johnston, Syd Barrett, Amy Winehouse e Luís Pacheco em dia mau, personagem menor do anti-folk, a solo e a bordo dos Moldy Peaches, mas também suposto artista plástico e cineasta carburando a ketamina), assim como a Vou Rifar Meu Orgulho (Ana Rieper, 2011), inexplicável defesa sócio-antropológico-estética da canção romântica “brega” brasileira e a About Canto (Ramon Gieling, 2011), hagiografia do muito tardio compositor minimal-repetitivo holandês, Simeon ten Holt, e da sua peça para quatro pianos, “Canto”, criação revestida de poderes milagrosos que terá estimulado partos, desencadeado divórcios e cuja partitura alguns devotos tatuaram no corpo.



Sobra, assim, um quarteto de filmes que, em diversos registos, observam, testemunham e comentam personagens, épocas e movimentos. Neil Young Journeys (2011) – terceira colaboração entre Young e Jonathan Demme após Neil Young: Heart of Gold (2006) e Neil Young Trunk Show (2009) –, em montagem paralela, documenta o concerto no Massey Hall, de Toronto, em Maio do ano passado (40 anos depois do lendário anterior – fixado em Live At Massey Hall 1971 –, aquando da digressão de Journey Through the Past), e em modo de travelogue, acompanha Neil, a bordo do seu Ford Crown Victoria de 1956, numa viagem pelas memórias de infância e juventude, através do Ontario e, em particular, na cidade natal de Omemee. Não é o mais belo dos filhos do matrimónio Young/Demme (esse, é ainda, sem dúvida, Heart Of Gold) mas não deixa de ser uma criatura escorreita e de bom trato.



Verdadeiramente recomendável é Fever Year (Xan Aranda, 2011), exploração de profundidade da personalidade e do processo criativo de Andrew Bird, filmada na etapa final da digressão de 2009, em que, após esgotantes 165 concertos, Bird confessa que, apesar de ter feito uma entorse num pé e não se encontrar na melhor forma física (“I’m either sweating bullets or I’m freezing all the time”), tudo isso é preferível ao “pior público que existe: os microfones de um estúdio”. Mesmo descontando o precioso bónus que é vê-lo, sobre a cama de um quarto de hotel, ensaiando uma canção com St. Vincent, esta é, seguramente, uma eloquente demonstração de como ele próprio se define: “A música devorou-me inteiro. Eu sou aquilo que faço”. Punk in Africa (Deon Maas e Keith Jones, 2011), por outro lado, revela uma faceta virtualmente desconhecida de uma atitude musical que, possivelmente, neste caso mais do que em qualquer outro, foi literalmente devorada pela política (sem que, por esse motivo, se tivesse deixado menorizar): o punk, tal como a África do Sul, o Zimbabué, Moçambique e o Quénia o conheceram, subordinado à palavra de ordem “In Africa, music cannot be for entertainment, it must be for revolution” – dos anos 70 até à actualidade. Finalmente, Wild Thing (Jérôme de Missolz, 2011), apresenta-se como uma espécie de diário íntimo do realizador que, de modo adorável, entranhada e ridiculamente francês, recapitula a sua história de vida como se de um subproduto da “transgressão” do rock se tratasse – de Chuck Berry à "no wave", passando por tudo o que lhe foi parecendo “nouveau et intéressant” – com um extenso depoimento de Iggy Pop enquanto elo de ligação de uma rica selecção de entrevistados e protagonistas da(s) época(s).

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