19 March 2012

O MUNDO DO AVESSO


















Alex Winston - King Con


















Birdy - Birdy


















Sharon Van Etten - Tramp

Na edição do “Guardian” de domingo passado, Alexis Petridis, genuinamente admirado por ainda existirem nacos da história pop por desenterrar, dava notícia da sua descoberta do blog online, Women's Liberation Music Archive, baú de tesouros ignorados esclarecedoramente subintitulado “Feminist Music-Making in the UK and Ireland, 1970-1990”. E o que aí se encontra são (inúmeros) documentos escritos e audiovisuais de duas décadas que parecem, agora, incrivelmente longínquas, bem exemplificados pelo manifesto da Northern Women’s Liberation Rock Band“uma coligação de feministas de diferentes classes, origens étnicas e pontos de vista políticos – maoístas, libertárias, lésbicas, heterossexuais e uma transsexual” – que, ao dar-se conta de que, embora se empenhassem em múltiplas áreas de actividade, “continuavam a dançar ao som dos Stones”, decidiram organizar-se contra “o gang de parasitas masculinos ávidos de lucros que controla a música” e “transformá-la numa força dirigida contra eles”. A coisa respirará muito o espírito da época mas convirá recordar que, na altura, a presença das mulheres no cenário pop/rock – à excepção dos "girl-groups" da Motown, de algumas heroínas soul, de uma ou outra flor na lapela de bandas masculinas e de meia dúzia de "singer-sonwriters" – estava bastante longe de poder proporcionar a oportunidade de – como aconteceu na minha selecção dos melhores de 2011 – surgir um top-10 onde apenas um álbum tinha assinatura masculina.


Bush Tetras - "Cold Turkey"

Não foi necessária a introdução de quotas para modificar a situação mas bandas e personagens do punk, pós-punk e áreas adjacentes, como Lydia Lunch, The Slits, Patti Smith, The Raincoats, Bush Tetras e Laurie Anderson ou activistas militantes “com uma causa” do género das Bikini Kill – Kathleen Hanna publicaria, em 1991, o “Riot Grrrl Manifesto” – não só virariam o mundo pop do avesso como também permitiriam que três inevitáveis consequências daí decorressem: o conceito “girl power”, recuperado e convertido em marca comercial, passou a significar investimento com retorno garantido (Spice Girls, lembram-se delas?); o crescente número de mulheres na pop tornou-se um dado adquirido; descendências particularmente radicais (como as russas, Pussy Riot, actualmente ameaçadas com uma pena de sete anos de cadeia por terem ousado uma performance-relâmpago anti-Putin na Catedral do Cristo Salvador, em Moscovo) são encaradas enquanto radicais e não especialmente pelo facto de se tratar de mulheres. Mas também, naturalmente, ao abandonar o estatuto de espécie “protegida” em região demarcada, a fêmea pop (em particular, na subespécie indie) ficou vulnerável aos males que afectam a restante fauna.



Alex Winston é um óptimo exemplo disto: movendo-se num terreno que não se entende bem se é "mainstream" ansiando desesperadamente por ser visto como “alternativo” ou o seu inverso, na estreia, King Con, aplica-se na normalização daquela (suposta) excentricidade de que Kate Bush e a sua apóstola, Joanna Newsom, registaram a patente – e cujos timbre e maneirismos vocais Winston, diligentemente, mimetiza. Não se enganou quem já a classificou como “the sugary sound of weirdness”: o produto contém ingredientes tão peculiares como a poligamia, a observação entomológica dos traumas provocados por uma adolescência vivida em habitat Amish ou o desenvolvimento de relações românticas com objectos inanimados, mas todos incluídos numa sorridente ementa "à la carte" em que é possível optar por tempero folk, synth-pop ou exótico ainda que o foguetório eufórico dos refrães seja inegociável.



Birdy, entretanto, é o que só se pode designar por "case study" a manter sob rigorosa vigilância: revelada num concurso de talentos – o Open Mic UK, de 2008 – quando tinha doze anos, miraculosamente, Jasmine van den Bogaerde, de seu verdadeiro nome (e sobrinha-neta do actor Dirk Bogard), teve a sorte de, com sábio aconselhamento ou por iniciativa própria, optar por um reportório que autoriza a esperança de que, deste casulo, não sairá uma Joss Stone: canções dos National, Fleet Foxes, Phoenix, Bon Iver, The Postal Service, The xx ou (pronto, ninguém, muito menos aos quinze anos, é perfeito) James Taylor não são nenhuma nódoa em início de currículo embora a fórmula, quase única, de piano e voz (virtuosamente poderosa, logo, indesejável factor de risco futuro) tenda a esgotar-se rapidamente e a única peça da autoria de Birdy, "Without A Word", não seja exactamente transcendente.



Sharon Van Etten, finalmente, é outra demonstração dos imensos benefícios a colher quando se frequenta gente de confiança: "singer-songwriter", algures entre os abalos emocionais de Kristin Hersh e Nina Nastasia, mas que faz questão de manter Patti Smith e John Cale no radar, nos álbuns anteriores (“Because I Was In Love”, 2009, e “Epic”, 2010), mesmo recebendo os louvores de alegados pares do reino (Justin Vernon, Dave Alvin e os National fizeram releituras da sua "Love More"), deixara sinais de poder escorregar com alguma facilidade para os terrenos alagados do confessionalismo embaraçosamente autobiográfico. Agora, em Tramp, se não se afasta drasticamente daí, fá-lo, porém, com uma espinha vertebral sonora assaz mais consistente. Aaron Dessner (National) tomou conta da produção e, acompanhada pelo mano Bryce Dessner, Zach Condon (Beirut), Matt Barrick (Walkmen) e outras notabilidades, a música não se limita ao papel de afago dos textos mas, algo cinematicamente, intervém sobre eles, comenta-os e transforma-os em combustível para canções tensas e inteiras.

(2012)

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