10 February 2012

A DOCE FADIGA



Leonard Cohen - Old Ideas

Axioma: nenhum álbum de Leonard Cohen – pense-se o que se pensar acerca da classificação por meio de estrelas – merece menos de 5 estrelas. O que, como axioma que é, não carece de demonstração. Significa isto que, muito antes de ter escutado as primeiras notas de Old Ideas, as estrelas que, por obrigação contratual, lhe deveria atribuir, não existindo grau superior a 5, estavam já decididas. Esclarecida esta questão (para além do mais, eventualmente legitimável, com uma considerável dose de descaramento, recorrendo ao pensamento matemático de Kurt Gödel), há que atacar, de imediato, uma outra não menos essencial e que, durante décadas, tem obscurecido tudo o que se escreveu sobre a obra de Cohen: à excepção da catedral em forma de abismo, Songs Of Love And Hate – e, mesmo aí, por motivos (sérios mas secundários) de ordem exclusivamente cenográfica –, nele, a música não tem a menor importância. Em qualquer dos doze álbuns que, desde 1967, registou, apenas duas coisas contam: os textos e a voz. No limite, poderia até dizer-se que toda a sua discografia é exclusivamente um exercício de "spoken word", musicalmente emoldurado, e isso também nos casos em que o que contém mais se possa assemelhar a canções. Pelo que, não faz qualquer sentido valorizar ou desvalorizar cada disco de acordo com a sua suposta “qualidade” musical: preferencialmente aconchegadas à austeridade folk ou enquadradas por arranjos de salão de baile pelintra (como se Leonard só soubesse salmodiar – isto é, entoar cânticos de louvor – demolindo a solenidade em atmosferas profanas de lupanar), voz e palavras precisam de pouco mais que um embalo para acharem a cadência exacta. Se possível, amparadas pelo sopro de coros femininos. Não por serem coros mas por serem femininos.

Old Ideas – em “old” não se leia “velhas”, leia-se “antigas”: as únicas de sempre, desde que “the word became a man (...) and the suffering began” –, logo no portal de entrada ("Going Home"), planta deliberadamente a dúvida se Cohen fala de si para si ou se reproduz os termos da relação que com ele estabeleceu o artista anteriormente conhecido como d.e.u.s.: “He does say what I tell him, even though it isn’t welcome, he just doesn’t have the freedom to refuse”. E o pacto que, daí para a frente, todo o álbum desenvolverá negoceia-se entre o que Leonard deseja (“He wants to write a song, an anthem of forgiving, a manual for living with defeat”) e o que Cohen – ou d.e.u.s. – lhe impõe (“I want to make him certain, that he doesn’t need a burden, that he doesn’t need a vision, that he only has permission to do my instant bidding, which is to SAY what I have told him to repeat”). Desde há muito que, por contágio, as trevas ganham terreno (“I caught the darkness drinking from you cup, I said: is this contagious?, you said: just drink it up”) – e o que é de admirar é ter sido necessário quase meio século para que uma canção ganhasse o direito a ousar intitular-se "Darkness" – mas o "singer-psalmwriter" que confessa não gostar de canções “com ideias” (“As ideias são aquilo de que nos queremos libertar”) parece quase aliviado por já não lhe ser indispensável, como, há vinte anos, no “Futuro”, ajoelhar “at the alpha and the omega, at the cradle of the river and the seas” e descobrir-se “tired of choosing desire (...) saved by a sweet fatigue”. Não se chame a isto desilusão ou abdicação, Leonard, Cohen, ou Leonard Cohen, nunca teve especial apreço por ilusões ou sonhos (experimentem voltar a ouvir "The Old Revolution"). Apenas um gesto de alijar a carga supérflua para que o final da viagem possa ser menos penoso, enquanto, ao fundo, se projectam sombras de blues, gospel, coreografias de cabaret e, em "Amen", se juraria que Tom Waits espreita dos bastidores.

(2012)

6 comments:

Manuel Carvalho said...

“…, nele, a música não tem a menor importância. …, apenas duas coisas contam: os textos e a voz. … toda a sua discografia é exclusivamente um exercício de "spoken word", musicalmente emoldurado, …”

Caro João Lisboa
É possível gostar ( e sentir até ficar com a pele dos braços arrepiada , então com a The Stranger Song…) de LC e não saber inglês? Uma questão que me acompanha há 25 anos ( sim, já tive de aprender) e que, a pretexto da sua recensão, lhe coloco.
Abraço

pcristov said...

ainda há dias contava a uma amiga aquela tua velha máxima que envolve o sr. cohen e flatulência. de resto, o disco é, de facto, uma maravilha.

ps - apenas ontem fiquei a saber da ligação do leonard com a rebecca de mornay. mera curiosidade. mas isso fica para posts mais felinos.

João Lisboa said...

"É possível gostar (e sentir até ficar com a pele dos braços arrepiada , então com a The Stranger Song…) de LC e não saber inglês?"

É. Lembro-me bem de ficar a ouvir o primeiro álbum e, mesmo entendendo os textos, deixar-me ir atrás só, só, da voz. Era uma experiência perigosamente próxima da religiosidade.

Até perceber que isso - como a recitação do dhikr muçulmano ou do rosário cristão - é nada "religioso" e tudo autoindução acústica de frequências cerebrais... muito agradáveis.

João Lisboa said...

"mas isso fica para posts mais felinos"

Os chamados pussy posts?

pcristov said...

"Os chamados pussy posts?"

esses.

Manuel Carvalho said...

É isso que acontece comigo ( ao contrário do que escrevi ainda não aprendi, queria dizer : sim, já tive tempo de aprender . A frase saiu incompleta. Agora mais vale aprender alemão ou mandarim) e deve ter acontecido com LC quando se referiu ao disco da Amália na reportagem ao lado do seu texto.
Bem, vou ter de comprar a Mojo (!) para ouvir – entre outros – a versão de bird on a wire pelo Marc Ribot e My Brightest Diamond.