19 November 2011

ISTO NEM TERIA DE SER NECESSARIAMENTE MAU SE OS RECURSOS
FOSSEM CONDUZIDOS PARA ONDE SEMPRE DEVERIAM TER SIDO



Há cerca de dez anos, ainda o "3/2008 de 7 de Janeiro" se chamava "319/91", como trabalho final de uma treta "de formação", apresentei o texto que reproduzo a seguir. Naturalmente, gerou um bocado de mau ambiente mas porque, desgraçadamente, se mantém, quase na íntegra, actual, talvez seja a altura de lhe oferecer uma segunda existência. Respirem fundo: é longo, e vai sem bonecos e tudo.

DECRETO-LEI Nº 319/91: A OFICIALIZAÇÃO DO PROFESSOR KARAMBA

A escola de pensamento do "desenrasca", do "jeitoso" como substituto preferencial do especialista profissional, do "artesanal" manhoso no lugar do produto bem concebido e bem acabado tem uma longa e desgraçada história. A mesma história do Portugal dos três "p": provinciano, pobre e periférico. Ainda que (apesar de uma larguíssima frente de resistência...), sempre se vá privilegiando a ida ao médico em vez da consulta à bruxa ou ao curandeiro. Recentemente, os professores, na "instrução de processos" disciplinares dos alunos, foram convidados pelo Ministério da Educação a brincar aos advogados: lavravam "autos", ouviam "testemunhas" e "queixosos", julgavam "réus" e "arguidos". Não faziam a menor ideia do que estavam a fazer, 99% desconhecia tudo de Direito (e não tinha nada que conhecer!), mas aquilo assim "soava melhor". Era apenas teatro num país de teatro medíocre. Estava absolutamente certo. E não tinham nada que se espantar: desde 1991, que, visto e aprovado pelo Conselho de Ministros e promulgado pelo Presidente da República, Dr. Mário Soares, o Governo os convidava a brincar ("honi soit qui mal y pense")... aos médicos. E aos psicólogos. E a todos os outros técnicos de saúde mental e física. Onde? No famigerado decreto-lei nº 319/91 de 23 de Agosto, no preâmbulo do qual, inexplicavelmente e sem o menor fundamento, se declara que, em função da "evolução dos conceitos resultantes do desenvolvimento das experiências de integração" e fruto da "experiência acumulada durante estes anos", na "legislação que regula a integração de alunos portadores de deficiência nas escolas regulares", passa a vigorar "a substituição da classificação em diferentes categorias, baseada em decisões do foro médico, pelo conceito de 'alunos com necessidades educativas especiais', baseado em critérios pedagógicos"

Já seria interessante a distinção entre "decisões do foro médico" (supõe-se que científicas) e "critérios pedagógicos" (??? - ah! mas há as "Ciências" da Educação!). Só que, sem que nunca se defina (ao menos "pedagogicamente", já que "cientificamente" parece estar ultrapassado) o que são "alunos com necessidades educativas especiais", mais à frente, no artigo 15º relativo ao Plano Educativo Individual, se vai mais longe e se adianta que, nos elementos a constar obrigatoriamente só deverão figurar "o relatório médico e recomendações dos serviços de saúde, se tal for adequado". Se tal for adequado! Para lidar com a educação de crianças cegas, surdas, deficientes mentais e motoras, para entender cientificamente a diferença e daí retirar as consequências pedagógicas, o relatório médico e as recomendações dos serviços de saúde poderão ser dispensáveis! Por outras palavras: os professores (com ou sem o apoio de técnicos, com ou sem recursos materiais de apoio, com ou sem formação específica para isso) que experimentem! Cobaias não faltam! Que sejam "dedicados" e "imaginativos", que usem do "bom senso", que vão às apalpadelas e inventando eternamente a roda que, noutras paragens mais civilizadas, já não precisa de ser reinventada diariamente uma vez que existe, evidentemente, um saber tecnico e científico acumulado pronto a ser aplicado e pedagogicamente traduzido, caso a caso. Perante isto, haverá quem tenha autoridade para processar o "Professor Karamba" (sim, Professor, porque não?) como vigarista e charlatão?

DOIS "CASE STUDIES" OU A NOVA TRAGÉDIA DE PEDRO E INÊS

Pedro tem dez anos e "vive num ambiente estruturado com os pais e uma irmã de catorze anos". Teve um "desenvolvimento normal", fez "exames audiológicos e audiogramas" com resultados "normais". É "simpático", "comunicativo" e "irrequieto". Tem "problemas de comportamento e indisciplina" na sala de aula. Na primária, embora as fichas informativas escolares referissem "pouca responsabilidade face às tarefas, dificuldades em estar atento, em cumprir as instruções dadas pela professora e a necessidade de melhoria do seu comportamento", teve um aproveitamento "regular". Uma avaliação psicológica num serviço externo à escola declarou-o com capacidade intelectual, raciocínio e desenvolvimento "médio-superiores", capacidade de concentração "baixa", "défice de atenção com impulsividade e hipercinésia". O que fazer, então, com o Pedro, uma vez que não é de prestar grande importância aos "relatórios médicos e recomendações dos serviços de saúde" (eu sei lá o que é "hipercinésia" e se isso não quer apenas dizer que o raio do miúdo, como todos os miúdos normais, "não pára quieto"?)? "Pedagogicamente" (isto é, "não medicamente"), se calhar, recomendava aos estruturados pais que o acompanhassem mais proximamente e, quando ele se portasse mal, não o deixassem ver televisão, a ver se ele atina. Mas que sei eu? O "Professor Karamba", possivelmente, pensa de outra maneira...

Já a Inês tem um ambiente familiar "complexo": pai desempregado e mãe depressiva. Na TEC (Tomografia Electroencefalográfica Computorizada), acusou "valores médio-baixos em todas as áreas corticais e em todas as frequências" (?); no EEG (Electroencefalograma) Simples Computorizado/Análise de Frequência (??) mostrou "deficiente colaboração" (???) e "apreciável atraso nas respostas" (????). Tem "falta de acuidade visual/astigmatismo na vista direita". Repetiu dois anos na primária e abandonou o segundo ciclo no primeiro ano, estando, com 12 anos, no 5º ano. Aparentemente, de acordo com um relatório "de observação psicológica" e outro "psicoeducacional", entre outras afecções ("fadiga fácil", "dificuldade em considerar mais do que uma fonte de informação ao mesmo tempo", "fragilidade mnésica", "grave problema de motivação"...), sofre de "síndroma disléxico de natureza mista, com componente linguística e perceptiva (má discriminação auditiva que se relecte na leitura, escrita e oralidade), com erros sistemáticos de origem fonológica e sintáctica, falhas semânticas e perda de fluência (trocas, omissões e substituições, vocabulário pobre), dificuldades na organização vísuo-perceptiva e na estruturação espácio-temporal, sobretudo devido a lentidão no processamento de informação"

Fico perplexo: sofrerão praticamente todos os meus alunos de "síndroma disléxico de natureza mista"? O astigmatismo (origem da dislexia?...) não se costuma resolver com... óculos? E a dislexia propriamente dita (acerca da qual uma exaustiva viagem pela Internet nos esclarece rapidamente acerca de um facto crucial: ninguém sabe realmente nada acerca de causas, tratamento e natureza — as opiniões oscilam desvairadamente na sua caracterização como "patologia" ou "benção dos deuses" só concedida a cérebros geniais), como a encarar? Que poderia fazer, eu que me recuso a brincar aos "amadores iluminados", por entre a linguagem (sim, também é uma linguagem) das claves de sol, colcheias, pautas e xilofones? Pedir-lhe que se concentre no dó e esqueça o lá? Supor uma relação entre a deficiente resposta das "áreas corticais" e o modo mixolídio? Imaginar que, em vez de aulas de Educação Musical — e para ficar apenas por este âmbito —, não seria antes aconselhável a frequência de sessões de Musicoterapia para a qual eu não possuo qualquer formação nem a menor vocação e que nunca poderiam acontecer no contexto de uma turma "normal"? Pedir um EEG para determinar a reacção (positiva ou negativa) às "gavottes" e "allemandes" do Pierre Phalèse? Mas para quê se, eventualmente, "o relatório médico e as recomendações dos serviços de saúde" não só "não são adequados" como, talvez mesmo, desnecessários? Ainda vou acabar a pedir recibo de consulta ao Professor Karamba, para meter na ADSE ...

N.E.E., A.C e C.M.G.: MAPA DE ESTRADAS

Necessidades Educativas Especiais. Adaptações Curriculares. Objectivos mínimos. Que significam? Baixar ainda mais um nível de exigência cada vez mais baixo, tornar o currículo "mais fácil" em jeito de caridade pedagógica para com os "mais desfavorecidos" em todas as modalidades de "desfavorecimento" possível? Ou, tão obviamente que ofusca, ter simplesmente em conta os diversos pontos de partida, as diferentes condicionantes e constrangimentos e, a partir daí (mas como o farei sem "o relatório médico e as recomendações dos serviços de saúde"?), imaginar outros percursos, ritmos e estratégias sem abdicar nunca de pretender conduzir todos os que o conseguirem ao mesmo ponto de chegada? A esse ponto de chegada que só pode ser o tal C.M.G. — Conhecimento Mínimo Garantido — sem o qual ninguém (branco, preto, rico, pobre, fisicamente escorreito ou não) pode ser considerado cidadão verdadeiro e estar capaz de usufruir de todos os direitos e privilégios que um mundo civilizado lhes deve garantir.

O que tudo isto significa é, afinal, simples: acolher devidamente estes alunos implicaria escolas habilitadas e técnicos capazes em número suficiente e com as dotações orçamentais necessárias. Mas para o Estado — que se benze e ajoelha sempre que pronuncia a palavra "educação" —, aparentemente, na fria e dura realidade da Economia & Finanças, outras prioridades parecem existir. É, então, fácil sacar da bandeirinha da "não discriminação" e despejar para turmas "normais" de escolas "normais" todos os alunos "com NEE" onde deverão ser amavelmente "integrados". Mas onde, irremediavelmente, acabarão por ser, aí sim, realmente "discriminados" e carinhosamente "excluídos" pela evidente incapacidade e ausência de formação profissional específica dos professores que os recebem. 

(2011)

6 comments:

Anibal Duarte Corrécio said...

5*****! Aprovado na globalidade !

Voz da Arcada said...

Sim.Acho que deve descer à especialidade

João Lisboa said...

Desça, pois.

margarete said...

Comecei a trabalhar em 98, tinha gabinete no privado (já agora, um offtopic, uma coisa que sempre me fez muita confusão é que não precisei de nada senão do livro de recibos verdes para isto; vi os meus pais gastar dinheiro durante anos por causa da inspecção de saúde na sua pastelaria, mas eu só precisei de ter um diploma e um escritório e abrir a porta ao público, foi quando percebi a razão de ser das condições, ou falta delas, de certos consultórios na província).
Adiante, assim que se soube do meu gabinete fui invadida com marcações. A maior parte dos contactos eram realizados por professores/educadores de infância, a início achei normal, pensei que talvez estes tivessem mais facilidade/disponibilidade ao invés dos pais (aliás, não pensei muito nisso até começar a receber essas famílias). Andava tudo com o “319” na boca. Achei normal que me pedissem relatórios para o processo da equipa e p/ a S.Social.
Enfim, percebi logo que eram pessoas estranhas quando chamei o primeiro menino na sala de espera, vinha a criança, os pais e a educadora, após os cumprimentos convidei os pais e a criança a entrar no meu gabinete. Eis que a educadora me “elucidou” que seria ela a entrar –sozinha- com a criança. Expliquei-lhe que… não. Aquela criança vinha acompanhada dos pais e que, no final, a ser a vontade destes partilharíamos toda a informação necessária para colaborarmos no apoio à criança. Passei a ser conhecida como “aquela terapeuta complicada”.
Ligavam-me a querer desancar-me se enviava relatórios por mão, pelos pais, em envelope aberto, e eu ria e era terrivelmente sobranceira a responder-lhes acerca da circulação de informação, dos direitos da criança e dos pais. Uma vez, um professor questionou-me a sensibilidade (como se fora uma questão de coração): que sentiria eu se lesse um relatório a dizer que “o meu filho (ainda me pôs, “obviamente”, em causa por não ser mãe) é complicado e mal-educado” ou que “a família é desestruturada”, bem, devolvi-lhe a questão e passei por arrogante.

O pior é que todo aquele aparato de “abertura de processos” levava a nada senão a ver passar crianças com as mesmas dificuldades de leitura/escrita ano após ano. Algumas fizeram terapia da fala, porque o caminho seria por aí, outras consegui encaminhar os pais para um apoio externo à escola, uma senhora que já dava explicações quando eu era miúda, nunca soube se foi professora mas conhecia-a e sabia que ela conseguia o que muitas reuniões e relatórios travavam, e fazia-o com carinho para com a criança e respeito para com a família. Era pago e não comparticipado, enfim, pode dizer-se que era barato. Mas esta não foi a sorte de muitas das crianças.

O ano passado, no âmbito do mestrado em antropologia médica, comecei um trabalho escrito sobre dificuldades de aprendizagem com isto:
«O segundo equívoco é o que há umas perturbações chamadas “instrumentais”, nas quais se coloca uma coisa chamada “dislexia”, que ninguém sabe o que é, mas de que toda a gente fala. Eu aliás sou responsável por isso, porque creio que fui a primeira pessoa que falou nisso aqui, há muitos anos. Mas a coisa realmente é tão exagerada hoje…»
João dos Santos in Se Não Sabe Porque é Que Pergunta

João Lisboa said...

"O pior é que todo aquele aparato de “abertura de processos” levava a nada senão a ver passar crianças com as mesmas dificuldades de leitura/escrita ano após ano"

Business as usual... e a citação do João dos Santos não podia ser mais apropriada.

Anonymous said...

Hi, guantanamera121212