07 November 2011

INTOCÁVEIS



St. Vincent - Strange Mercy




Laura Marling - A Creature I Don’t Know

Annie Clark diz “Não acontece todos os dias poder subir-se a um palco, vomitar toda a bílis misantrópica que temos cá dentro para cima de uma multidão e ouvi-la pedir ‘Mais!...’”. Laura Marling confessa “Não sou religiosa, não sou romântica, e vivo exclusivamente guiada pela lógica”. Clark (aliás, St. Vincent, por um motivo particular: foi no Saint Vincent’s Catholic Medical Center, de Manhattan, que Dylan Thomas, em 1953, morreu – “É o lugar onde a poesia vem morrer. Sou eu”), quando não emite opiniões como “Não penso, necessariamente, que os seres humanos tenham sido talhados para a monogamia”, gosta de largar pelas canções frases, mais ou menos heterodoxas, do género de “Jesus saves, I spend” ou “We'll do what Mary and Joseph did, without the kid”. Marling, que entende a escrita de canções enquanto pretexto para “manter uma conversa com pessoas com as quais não nos é possível conversar”, desenha, quase subliminarmente, autoretratos – “Cover me up, I’m pale as night, with a mind so dark, and skin so white” – tão exactos quanto inquietantes. E ambas, ao terceiro álbum (e, respectivamente, aos 29 e 21 anos), atingem aquele estatuto de intocabilidade que, habitualmente, exige um pedaço de carreira consideravelmente maior.


St. Vincent - "Cruel"

St. Vincent, é aquilo a que se poderia chamar “drop-out com uma causa”: após ter frequentado, durante três anos, o Berklee College Of Music, desistiu do curso alegando que “chega sempre um momento em que, depois de termos aprendido aquilo que pudermos, devemos esquecer e desaprender tudo para começarmos realmente a fazer música”. E, quando esse momento chegou, em 2003, alistou-se na tripulação dos Polyphonic Spree e, a seguir, na banda de Sufjan Stevens, para, em 2007 e 2009, publicar Marry Me e Actor, pequenos clássicos instantâneos de pop literata e barroca, com tanto de Bowie como de Robert Fripp, dos musicais da Disney (triturados por Tim Burton) ou do cinema de Godard em que uma Anna Karina texana, diante de Paris em chamas, murmurasse “Come sit right here and sleep while I slip poison in your ear”. Strange Mercy, sem contrariar verdadeiramente o que dela conhecíamos, abre mais espaço para a Annie Clark propriamente guitarrista – a que aceita de bom grado ser convidada a saltar na fogueira de versões dos Big Black – e para complexidades estruturais algures entre Björk, Grizzly Bear, Andrew Bird e Dirty Projectors, como luxuoso cenário de sequências de Rohmer vertidas em vocabulário S&M ("Chloe In The Afternoon"), evocações elípticas de Marilyn (“Best, finest surgeon, come cut me open”) e John Barry (a vénia a "You Only Live Twice" de "Surgeon"), e amáveis provocações (”I’ve had good times with some bad guys, I’ve told whole lies with a half smile”).


Laura Marling - "Night After Night"

Musa e diva da cena "nu-folk" londrina que, desde 2007, pariu Johnny Flynn, Mumford & Sons ou Noah & The Whale (“Não havia cena nenhuma, limitámo-nos a descobrir as colecções de discos dos nossos pais todos ao mesmo tempo”), Laura Marling, com os óptimos Alas I Cannot Swim (2008) e I Speak Because I Can (2010), apenas por dois anos não apeara Roddy Frame do posto de génio mais precoce de sempre da pop britânica. Mas, detalhes etários à parte, será muito difícil encontrar uma outra tão amadurecida digestão contemporânea dos êxtases materiais de Judee Sill e Leonard Cohen (a homenagem a este em "Night After Night" não poderia ser mais explícita) ou da ira da primeira PJ Harvey, transportada através de Neil Young, para a fluidez de Joni Mitchell, sob a aprovação insolente de Fiona Apple, do que este magnífico A Creature I Don’t Know.

(2011)

4 comments:

jaa said...

Ai és fã da Annie e da Laura? Olha - e se fosses para a fila?

Bom texto.

fallorca said...

Intocáveis lembra-me o programa do Paulo Fernando, na velha rádio: tocava duas espiras, concluía que eram «intocáveis» e partia o disco

João Lisboa said...

"e se fosses para a fila?"

Cheguei muito antes. Sorry.

:-)

João Lisboa said...

"tocava duas espiras, concluía que eram «intocáveis» e partia o disco"

Tenho só uma vaga ideia disso. Mas acho que nunca ouvi.