05 October 2011

O UNIVERSO E TUDO À VOLTA



A intenção seria simplificar mas Biophilia, o oitavo álbum de estúdio de Björk, transformou-se numa desmedida “meditação sobre a música, a natureza e a tecnologia” que, recorrendo à Internet, instalações, iPad, jogos, partituras, alegorias visuais interactivas, concepção de novos instrumentos, David Attenborough (sim, esse mesmo) e à possibilidade de o utilizador modificar os próprios temas, não anda muito longe do que a sua criadora – quase parafraseando involuntariamente Douglas Adams – admite ser um ensaio sobre “life, the universe and everything”. Apresentado na qualidade de embrião ainda em processo (ininterrupto) de gestação no Manchester International Festival de Julho passado, foi lá que a ouvimos explicar em detalhe como decidiu começar tudo de novo.

Em todo este seu projecto que concebeu como uma exploração multimédia do universo, da natureza, da música e da tecnologia, e acerca da forma como o som se relaciona com tudo isto, com toda uma enorme diversidade de possibilidades e aplicações, nunca receou estar a oferecer uma quantidade demasiado grande de informação para o público actual?
Antes de mais, parece-me que existe uma contradição no interior deste projecto. O meu objectivo era simplificar as coisas e não complicá-las. Esta é uma primeira resposta à sua pergunta. Estava no final do meu contrato com a editora, portanto, livre. A situação que se vivia na Islândia, o facto de todos os velhos sistemas terem entrado em colapso, também mexia comigo. Por questões de defesa ambiental, tinha-me, igualmente, envolvido bastante em iniciativas que procuravam encorajar as pessoas a pensar que existem coisas mais importantes do que construir mais umas quantas fábricas de alumínio. Por outro lado, de um ponto de vista pessoal, na última tournée, fiquei sem voz o que me obrigou a fazer exercícios diariamente, consultar médicos, professores de técnica vocal, preocupar-me com a dieta... Portanto, tudo o que antes funcionava bem, pura e simplesmente tinha deixado de funcionar! (risos) Entretanto, à minha volta, só ouvia gente a queixar-se de que a indústria discográfica, com todos os problemas da pirataria, tinha chegado ao fim. Tomei, então, uma decisão: ok, se já nada funciona, há que deitar fora tudo o que está em cima da mesa e simplificar. Não podemos continuar a fazer as coisas como há dez ou vinte anos, temos de descobrir o que funciona agora. Os touchscreens tinham-me interessado muito, pareciam-me um enorme avanço a diversos níveis, por isso, de certo modo, esta foi a minha porta de entrada neste projecto. Porque, pelo menos, entre os 5 e os 15 anos, fui uma aluna de música frustrada – era um ensino demasiado académico e eu preferia que ele tivesse sido mais intuitivo –, sempre sonhei criar uma escola de música.



Mas de que forma os touchscreens poderiam ser uma via de acesso a essa relação mais intuitiva com a música?
Através dos touchscreens, apercebi-me de que talvez pudesse recuperar uma forma mais natural de lidar com as estruturas musicais: um compasso não tem de ser obrigatoriamente 4/4, pode ser 5/4 ou 11/4 sem que isso se transforme, inevitavelmente, num assunto friamente matemático. Por isso, quando me familiarizei com os touchscreens, pensei logo: não vamos apenas brincar com isto, vamos compor! Podia conceber um programa diferente para cada canção, baseando cada uma num elemento diferente da natureza, abordando-o, ao mesmo tempo, sob um ângulo emocional e musicológico. Enquanto trabalhava nisto, colaborava também com amigos na Islândia que se dedicavam à criação de empresas "startup", sem nos apercebermos realmente de que esse espírito pioneiro, muito "low budget" e DIY, nos estava a contagiar uns aos outros. Ao fim de alguns meses, pensei que talvez pudesse tirar partido de um dos muitos edifícios desocupados que existem na Islândia e localizar cada canção num espaço diferente: um seria reservado à canção do relâmpago ("Thunderbolt"), outro à da lua-cheia ("Moon") que, controlariam, cada um, a estrutura das canções. Este foi o ponto de partida que acabou por não funcionar mas não desisti. Nessa altura, a National Geographic fez-me também uma proposta que, à partida, me entusiasmou mas que, embora isso possa ainda vir a acontecer, não se concretizou. Durante estes dois anos, no entanto, as ideias tinham amadurecido e, quando surgiu o iPad, dei-me conta de que tinha encontrado o meu suporte natural. O problema é que, justamente quando eu procurava simplificar tudo – dizia, por exemplo, “reparem, os arpejos não nada muito complicado, são como relâmpagos” – ao escrever sobre isso para os "press releases", tornava-se, outra vez, académico e, no papel, extremamente complicado!... (risos) Era como se estivesse a elaborar um projecto sobre o Universo e tudo à volta! Se quisermos explicar a uma criança como se propaga o som numa sala, não é muito diferente do que se passa com os átomos, os planetas ou numa mesa de bilhar. E a música pode ser capaz de reunir esse lado mais científico e matemático com o outro mais emocional. O motivo porque, neste projecto, existe uma canção sobre o sistema solar, outra sobre vírus e outra sobre o DNA é porque o modo como nos movemos é semelhante ao do som.



Li algures que este seu projecto é algo que poderia ser comparado ao nascimento do cinema ou da ópera pelo facto de englobar tantas áreas e formas de expressão e comunicação diferentes. Concorda?
Não!... Compreendo a intenção na medida em que a ópera, como o cinema, foram plataformas que chamaram a si diversas artes. Mas isto é também uma reacção contra o que muitos amigos me dizem acerca dos "downloads" estarem a matar a música. E eu digo-lhes que não, a música nunca dependeu do formato. Quando a rádio surgiu, também houve logo quem dissesse que nunca mais haveria concertos.

E o vídeo exterminaria o cinema e o eBook liquidaria o livro...
Exacto. Mas, no fim, há sempre quem continue a fazer música e quem deseje escutá-la. E aprendemos a adaptar os formatos anteriores aos novos: de certeza, que nas primeiras transmissões de música sinfónica pela rádio, o som era muito mau. Para mim, sempre se tratou de descobrir e sugerir soluções.



Em Retromania, o Simon Reynolds, em contraponto com a obssessão contemporânea dominante de reciclar infinitamente o passado, no último parágrafo cita-a como “uma das heróicas e isoladas figuras modernistas que remam contra a maré”. Sente-se, de facto, nesse papel?
Encaro isso como um elogio. Mas, sob diversos aspectos, acho que sou bastante conservadora embora as pessoas não se apercebam disso. Tenho as minhas raízes e, enquanto cantora, terei sempre a mesma voz, com todas as suas limitações. Claro que gostaria de poder ter uma voz diferente todos os dias e não precisar de ter cuidados com ela. Mas não posso. É aborrecido mas, ao mesmo tempo, dá-nos a dimensão exacta da nossa importância. Quando oiço dizer que já foram escritas todas as canções possíveis é como se dissessem que, a partir de hoje, todas as crianças que irão nascer serão iguais às anteriores. Se confiarmos na natureza, será muito mais difícil copiar do que não copiar.

Mas, como o vosso vulcão islandês nos confirmou, convém não confiar demasiado na natureza...
Em países como a Islândia e o Japão, tudo isso vem envolvido em mitos e lendas que falam da humildade em relação à natureza. É impossível construir sociedades totalmente separadas da natureza, cortar esse cordão. No Japão, existia o xintoísmo e, a seguir, chegou o budismo que não eliminou o xintoísmo, mas coexistiu com ele. Quando os cruzados chegaram à Islândia e pretendiam converter à força a população ao cristianismo, houve uma reunião no parlamento, e um dos líderes pagãos, Þorgeir Ljósvetningagoði, depois de dormir uma noite sob uma pele de carneiro, propôs uma solução: quando eles aqui chegarem, dizemos-lhes que já somos cristãos. Daí surgiu uma lei que ainda existe que autoriza que, em privado, cada um possa praticar a religião que quiser. É por isso que os cultos pagãos continuam a ser populares: é essencial não cortar a ligação com a natureza e aprender a colaborar.

(2011)

1 comment:

Anonymous said...

lindo ;)