01 June 2011

NOBRE POVO

















Os Golpes - G


















Os Velhos - Velhos

Numa daquelas releituras dos clássicos que sempre ajudam a refrescar as ideias, pode acontecer tropeçarmos numa crónica jornalística de Fernando Pessoa (para o nº6 de “O Jornal”, de 1915) em que, apelando ao cultivo da “desintegração mental como uma flor de preço” e à construção de “uma anarquia portuguesa”, depois de caracterizar o sapiens lusitano (“O português é capaz de tudo, logo que não lhe exijam que o seja. Somos um grande povo de heróis adiados. Partimos a cara a todos os ausentes, conquistamos de graça todas as mulheres sonhadas, e acordamos alegres, de manhã tarde, com a recordação colorida dos grandes feitos por cumprir. Cada um de nós tem um Quinto Império no bairro, e um auto-D. Sebastião em série fotográfica do Grandela”), proclamava: “Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos tido, ou que temos querido ter, nos têm falhado, Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles vêm? As poucas figuras que, de vez em quando, têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido”. E Fernando Pessoa é muito bem-vindo à conversa não apenas por aquilo de que, com os sinais vitais razoavelmente mantidos, cada um se pode, facilmente, aperceber mas, aqui, em particular, no que diz respeito a alguma música portuguesa.



Irmã teologicamente adversa da FlorCaveira, a Amor Fúria, ao surgir, em 2007, não se limitou a publicar discos: perante o universo, anunciou-se como movimento “espontâneo, total, (...) um exército de rapazes e raparigas de caras e almas pintadas, pronto a transformar as emoções colectivas num momento partilhável pelas multidões. Apresentam cantigas, planeiam o fim deste mundo e o início de um novo tempo onde as canções substituam as janelas fechadas dos automóveis, as conversas dentro dos edifícios, as filas de espera para os autocarros, os desesperos solitários. Assumem a vontade de dançar um país diferente, e das ruínas de Portugal, dos seus ícones e bandeiras, desafiam o futuro, roubam o nome a uma canção dos Heróis do Mar, para se devolverem na partida ‘em busca de um país de árvores’. Eles são os Amantes Furiosos e proclamam as palavras de Carlos Drummond de Andrade (‘Chegou um tempo em que não adianta morrer, chegou um tempo em que a vida é uma ordem, a vida apenas, sem mistificação’)”.



Aparentemente, não na totalidade mas em boa parte e, sobretudo, no espírito, Heróis do Mar e regiões limítrofes (gente, por acaso, também de inspiração inicial assaz pessoana), acabaria por ser o conceito operativo. Porque, do “exército de rapazes e raparigas” – algo como o partido musical doutrinariamente unificado de candidatos a indisciplinadores -, o que mais notoriamente emergiria, seriam Os Golpes, revisão actualizada e (reconheça-se) algo melhorada da banda de Pedro Ayres de Magalhães e Rui Pregal da Cunha. “Com Portugal encravado na espinha e no coração” e um Quinto Império no bairro, reeditam, agora, em versão expandida, um EP lançado no final do ano passado, no qual, sem surpresa, participa... Rui Pregal da Cunha e se escuta uma enérgica releitura de "Paixão", dos Heróis, navegando o total das oito canções por águas esteticamente afins onde, certamente, se identificam as ruínas dos ícones e bandeiras mas o desafio ao futuro ainda se assemelha consideravelmente ao passado. O auto-D. Sebastião de Os Velhos, por outro lado, situa-se algures entre a primeira Sétima Legião e o punk de garagem, menos trágico-marítimo e mais urbano-épico, em cenários de três acordes e textos concisamente literatos. Num e no outro caso, porém, “o início de um novo tempo” continua em atraso.

(2011)

3 comments:

Unknown said...

João:
Off-topic - Recebeu via Expresso o disco de Kubik?

João Lisboa said...

Desta vez, será o RS a escrever sobre ele.

Unknown said...

Ok, obrigado. Estou certo que também está em boas mãos no RS.