VOZES AUTOBIOGRÁFICAS
June Tabor - Ashore
Marianne Faithfull - Horses And High Heels
Marianne Faithfull, com aquela naturalidade aristocrática que, nela, foi sempre uma segunda pele, aprecia falar dos piores episódios do seu passado soltando afirmações como “Não ser alcoólico nem consumir drogas, sem dúvida, ajuda muito”, embora confesse que, não sendo necessário viver de uma forma decadente, a decadência “é algo que ainda me atrai, continua viva em mim”. June Tabor, alma de outras geografias mentais, pelo seu lado, pareceu-lhe óbvio dedicar um álbum inteiro à história dos homens e do mar, ou seja (nas suas palavras), “aos naufrágios, emigração, canibalismo, interminável mau tempo e privações de todo o tipo”. Sobre Faithfull, disse a feminista dissidente, Camille Paglia, que Broken English (1979) era “uma das obras mais importantes alguma vez criadas por uma mulher” e Elvis Costello excomungou parcela considerável do universo afirmando “quem não gosta de escutar June Tabor, mais vale que deixe de ouvir música”. Mas, com quase um exacto ano de idade de diferença (June nasceu a 31 de Dezembro de 1947, Marianne em 29 de Dezembro de 1946), sem dúvida as duas mais impressionantes vozes femininas vivas da música popular britânica.
Vozes autobiográficas também. Se a de June Tabor espelha a do primeiro elemento da família que frequentou a universidade (Oxford, St Hugh’s College, Línguas Modernas e Medievais, essencialmente, francês medieval e do Renascimento, “nada depois de Voltaire!”, como ela sublinha), fugazmente, via-Françoise Hardy, sonhou com a pop, se entregou à folk ao lado de Maddy Prior, nas Silly Sisters, foi bibliotecária e episódica dona de um restaurante e, pelo meio, se ocupou a tornar-se “the most august voice in British folk”, a de Faithfull traz as marcas de uma herdeira da linhagem Erisso Von Sacher-Masoch, tragédia e "mal de vivre", cabaret, punk e alguma redenção, expelidas com veneno, paixão e ódio sobre uma incomparável discografia. É natural, pois, que as suas duas últimas obras não se afastem demasiado das coordenadas que já, bastamente, estabeleceram e, só por improvável acidente, elas não seriam, pelo menos, óptimas. Nem isso, contudo, nos prepararia para o torrencial assombro de Ashore, peça conceptual em que, de "street-ballads" a tradicionais franceses das Channel Islands, a uma releitura de "Shipbuilding" (de Costello) – que coloca a, até aqui, definitiva, de Robert Wyatt, em sentido – e, sobretudo, a aterradora "Across The Wide Ocean", de Les Barker (uma história de selvagem limpeza étnica nas Highlands escocesas), o denso nevoeiro da voz de June Tabor, paira, imperial, como uma bênção e maldição simultâneas.
Marianne Faithfull - "Prussian Blue"
Horses And High Heels, apenas um ou dois passos abaixo do anterior Easy Come, Easy Go (2008), é novo painel no cenário de abismos de Marianne Faithfull: uma vez mais, com Hal Willner aos comandos e participações cirúrgicas de Lou Reed, Wayne Kramer (MC5) e Dr. John, equilibra nove versões e quatro originais, envia um mínimo de cinco para o cânone (reparar, particularmente, em "That’s How Every Empire Falls", "Prussian Blue", "Goin’Back", "Horses and High Heels" e "The Old House") e, em tons de cinza e nicotina, afaga-lhe a acidez da voz.
(2011)
26 March 2011
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2 comments:
A propósito de June Tabor, anda por aí o novo das (dos?) Unthanks, também ele magnífico. A folk britânica já teve melhores dias, mas quando dá (os poucos) sinais de vida, é cada balão de oxigénio...
O novo das Unthanks - Last - é óptimo.
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