DESESPERADAMENTE VIVOS
R.E.M. - Collapse Into Now
À cabeça da entrada de Collapse Into Now, na Wikipedia, pode ler-se: “é o décimo quinto álbum de estúdio da banda americana de rock alternativo, R.E.M.”. Parece uma constatação meramente factual mas, na verdade, não é o género de frase que se aplique, sem prévia ponderação, a qualquer um. Porque está ali uma palavra em que poderá, facilmente, tropeçar-se: “alternativo”. Em particular, se antecedida da referência aos quinze álbuns anteriores. Complete-se, então, com os dados indispensáveis para que o tropeção possa ser, potencialmente, ainda maior: vinte e nove anos de carreira (à regularíssima média de um álbum em cada dois anos), nove compilações, doze DVD, dois EP, dois "live", dois "box-sets", sessenta e quatro singles. Não contando com participações e colaborações dispersas em projectos paralelos como os Hindu Love Gods e Tuatara.
E recordando que, desde 1988, aquando da publicação de Green, a banda cortou o cordão umbilical com a maternal "indie", IRS, e nunca mais abandonou o conforto acolchoado da "major", Warner. Foi a isto que aprendemos a chamar “alternativo”? Só mais um detalhe, porventura, decisivo, para decifrar o enigma: durante quase um terço de século – as coisas, colocadas desta forma, tornam mais nítida a dimensão temporal –, apenas um único exemplar do que, em rigor, deverá ser designado como "hit": "Losing My Religion", de 1989 (que, contudo, nos EUA, não trepou acima do 4º lugar do Billboard – a jogar em casa, o grupo de Michael Stipe e Peter Buck não tem nenhum primeiro lugar nas tabelas de vendas de que se possa gabar... caso quisesse gabar-se disso *), e, mesmo o directo-para-o-isqueiro-aceso-telemóvel-em-riste, "Everybody Hurts", o melhor que alcançou foi um terceiro lugar gaulês (29º nos EUA, 7º no Reino Unido).
Deve ter sido por aí que o estatuto “alternativo”-indie-de-culto – vinte e picos anos após (de acordo com a ética de rectidão artística vigente) terem vendido a alma aos demónios da indústria discográfica – não sofreu abalos significativos: os R.E.M., milagrosamente, na percepção comum da coisa pop, mantêm-se puros e incontaminados pelos pecados da ganância e da veneração, sem condições, ao repulsivo Moloch reinante. Praticamente tão virgens quanto o grupo de miúdos que, agora mesmo, entre o quarto desarrumado e a marquise, grava a primeira maqueta carregada de fífias e de entradas em falso, eles apresentam o novo Collapse Into Now e não desejam mais do que ser reconhecidos pelo mérito intrínseco. O que, em boa medida – reveja-se o CV –, até nem se deixa capturar demasiado pelos teatrinhos de sombras habituais.
Comparsas mais ou menos recorrentes (Patti Smith, Lenny Kaye, Eddie Vedder) e outros de circunstância (Peaches) comparecem, alguma reciclagem se pratica ("Überlin" é "Drive", por outras palavras), quase ingenuamente, busca-se a repetição impossível ("Oh My Heart" e "Every Day Is Yours To Win" sonham, em vão, com "Everybody Hurts" e "It Happened Today" imagina-se "Losing My Religion"), "Mine Smell Like Honey", "Alligator Aviator Autopilot Antimatter" e "That Someone Is You" galopam, ofegantes, na totalmente improvável direcção das origens, e, sem aviso, no último instante, "Me, Marlon Brando, Marlon Brando And I"/"Blue" – canções em deriva para delírio de proto-psicadelismo "free-form" – invocam Neil (Young ou Armstrong?... ambos fariam sentido), colocam as cartas na mesa (“I’m not sure where to place myself here, friend, I might pawn the gold rings instead”), imprevisivelmente, rendem-se (“the winners write the rule books, the histories and lullabies”) e, de um só golpe, paradoxalmente, trazem os R.E.M. de regresso ao mundo dos ainda desesperadamente vivos.
* A ausência de "primeiros lugares" refere-se a singles; os álbuns Out Of Time (1991) e Monster (1994) atingiram o top-1 nos EUA.
(2011)
09 March 2011
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