UMA CASA PORTUGUESA (II)
Max Beckmann - Natureza morta com três caveiras, 1945
"Antes do Natal duas adolescentes ofereceram-me na rua uma quadra manuscrita que apelava ao fim do consumismo e à espiritualidade. Tinham cabelos lustrosos, aspecto soigné e o fervor anacrónico de quem despeja mealheiros para baptizar pretinhos nas missões.
Fiquei atento e não me desiludi: na semana seguinte o país foi consumido por uma orgia salazarenga de caridade e devoção. Os sem-abrigo casaram-se em barda, as mães de Cascais fizeram soufflés aos entrevados, a Júlia e o Goucha entrevistaram manetas, tuberculosos e débeis mentais. Os alcoólicos sorveram sopa com cheirinho, muito boa, muito quentinha. Um patego da Guarda trajou de pai natal e deu chocolates do Lidl à terceira idade.
Sim, eu esperava uma epifania e obtive-a: Portugal não está deprimido nem mortificado como se diz por aí. Pelo contrário, Portugal exulta. Portugal está em júbilo, porque bastou um ano de crise para reencontrar os seus pobrezinhos no adro da igreja, os seus velhos de pés em chaga, os meninos escalavrados a lamber o ranho e a estender as mãos. E já tinhamos todos tantas saudades.
Na televisão, uma dondoca serve bacalhau aos desempregados e deseja-me um Natal supé feliz. Para si também, tia. Vemo-nos no reveillon — ou no céu, se Deus quiser". (aqui)
(2010)
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6 comments:
é mais ou menos isto, é sim...
Esta gente não percebe que a justiça deve vir antes da caridade. Praticam a segunda para que esqueçamos a primeira. Pró raio que os parta!
Votos de um Ano Novo mais justo e insubmisso.
Obrigado e igualmente.
É do caralho, não é?
"É do caralho, não é?"
Vou tomar isso como um elogio.
Claro que é.
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