10 December 2010

AVALANCHA




















Como o mundo inteiro sabe (e assim para toda a eternidade justamente ficará), a culpa foi da Yoko. Pelo final da carreira dos Beatles, as relações entre Paul McCartney e John Lennon já não seriam exactamente de fraternal harmonia mas foi naquele fatídico 9 de Novembro de 1966, na Indica Gallery, de John Dunbar, em Londres, que tudo começou a desabar quando este convidou Lennon para a inauguração de “Unfinished Paintings and Objects”, exposição de arte conceptual de uma japonesa descendente de uma rica família de banqueiros e de um imperador do Japão do século IX.

Se, inicialmente, a parceria com Yoko funcionaria como válvula de escape para os devaneios experimentalistas de John Lennon (os álbuns Unfinished Music No.1: Two Virgins, 1968, Unfinished Music No.2: Life with the Lions e Wedding Album, ambos de 1969) e para os seus métodos de intervenção política menos ortodoxos – os "bed-ins" pela paz no Vietname, em Amesterdão e Montreal, por exemplo –, muito depressa, porém, acabaria por atear o rastilho da dissolução do grupo. E, à excepção desses álbuns e de Live Peace in Toronto 1969 (na verdade, já um recuo para o conforto rock’n’rolliano), todo o percurso seguinte de Lennon acabou por se desenhar no interior de um idioma musical assaz convencional e muito distante do aventureirismo sonoro dos anos psicadélicos dos Beatles, quando não perigosamente próximo do “romantismo” mais duvidoso.



O pior exemplo disso é Double Fantasy (1980), álbum de domesticidades deliquescentes (quem suporta escutar confissões embaraçosas como “Our life together is so precious, let’s take a chance to fly away somewhere alone” ou “kiss kiss kiss kiss me love, just one kiss, kiss will do” por entre os gargarejos vocais de Yoko?), justamente aquele que, na avalancha de reedições comemorativas do 70º aniversário, foi objecto do mesmo tratamento a que Let It Be, versão-Naked, foi submetido em 2003: em modo-“Stripped Down”, pretende-se lipoaspirar-lhe a adiposidade da produção oitentista e entregar o primeiro plano à voz.

O resto da operação (que, à excepção das “frescuras” experimentais, reedita toda a discografia de estúdio, inevitavelmente, remasterizada) inclui duas compilações temáticas – Power To The People, espécie de “Greatest Hits” em CD e DVD, e a caixa de quatro CD, Gimme Some Truth, organizados segundo as subcategorias ‘Working Class Hero” (canções políticas), “Woman” (auto-explicativo), “Borrowed Time” (angústia existencial) e “Roots” (o rock’n’roll das origens) – e a John Lennon Signature Box, caixa “de luxo”com 11 CD, memorabilia iconográfica, as proverbiais “raridades” e "booklets" contextualizadores. Fã que é fã costuma também ser cego e não há crise que o impeça de cometer a loucura de adquirir tudo. Para os restantes, detentores de menor índice de fundamentalismo, menos familiarizados com a obra de Lennon ou que já se aperceberam que o horizonte próximo é de um negro profundo, em formato-compilação, irão, sem dúvida, bem servidos com Power To The People; a ter de optar por um único item, não hesitem: John Lennon/Plastic Ono Band, uivo arrancado às entranhas, é a escolha certa.

(2010)

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