17 October 2010

SOTAQUE AMERICANO


Lloyd Cole é gente muito cá de casa. Um daqueles autores que, por motivos que nunca esclareceremos completamente, se torna convidado frequente dos palcos portugueses e que, mesmo tendo há muito deixado de habitar o Olimpo das divindades pop (desde que, há 21 anos, se mudou para a Costa Leste americana, a Inglaterra natal só intermitentemente o recorda e, na Europa, Alemanha e Portugal são os seus portos de abrigo), mantém uma base eleitoral suficiente para, regularmente o reeleger como representante da canção-pop de fino recorte literário. Broken Record, o último e magnífico álbum, é pretexto para uma mini-digressão de cinco concertos * e para uma conversa acerca do que é ser um inglês no novo mundo e não estar a ir para novo.

Ao fim destes anos todos de quase dupla nacionalidade, qual lhe parece ser a diferença entre fazer parte de uma banda visceralmente britânica e tocar com músicos maioritariamente americanos?
Se eu quisesse ser um pouco pedante, diria que existe uma diferencia entre o balanço da secção rítmica de uma banda inglesa e de uma banda americana. Na forma como os instrumentos funcionam em conjunto, agora, é possível que esteja um pouco mais próximo do que acontecia nos Commotions. O meu objectivo era que, neste disco, a banda soasse como o Highway 61, do Dylan. Ou como ‘Something On Your Mind’, da Karen Dalton. Ninguém está, realmente, a solar mas os músicos trocam melodias diferentes entre si. O que, quando se trabalha com bons músicos, se consegue.



Mas pode afirmar-se que viver durante todo este tempo nos EUA, de alguma forma o americanizou?
Há frases americanas que uso mas também sempre as usei. O meu vocabulário musical provém do Leonard Cohen e do Bob Dylan e da literatura que lia quando era jovem que era, predominantemente, americana. A propósito deste disco, um fã criticou-me por usar a expressão “stupid ass”, segundo ele, um britânico não deveria dizer isso. (risos) Mas eu vivo lá há 21 anos e compreendi que, se insistisse em falar o inglês britânico, uma de duas coisas aconteceria: ou não seria compreendido, ou passaria a vida a ouvir “oh tão giro!... diga lá isso outra vez”. Por isso, sim, é verdade que me americanizei um pouco e que o meu próprio sotaque se modificou.

A intenção da minha pergunta era mais acerca do seu sotaque musical...
Não me parece. A minha estética continua a ser europeia. Mas a música que sempre fiz, desde Rattlesnakes, é baseada em diversas formas americanas: rhythm ‘n’ blues, rock’n’roll, blues, folk, country... mas nunca folk britânico.


Por acaso, neste disco, pela primeira vez, tem uma canção, "Man Overboard", que poderia, facilmente, ser vista como uma variação sua sobre uma "sea shanty"...
Talvez mais com uma "sea shanty" escocesa do que inglesa. Há, neste álbum, diversas coisas que decorrem de ter actuado como folk singer durante dez anos, apenas com a guitarra. ‘Man Overboard’ poderá fazer pensar numa "sea shanty" mas também poderia ser uma canção dos primeiros tempos do Leonard Cohen. Mas, voltando à sua pergunta, os Commotions sempre se dedicaram a formas musicais americanas submetidas a uma estética europeia. Se reparar nas diferenças entre os R.E.M e os Commotions – que tocavam tipos de música semelhantes –, na música deles havia qualquer coisa que os aproximava mais dos Allman Brothers do que dos Rolling Stones. Os Commotions, apesar de tocarem pop, partilhavam com os Stones o facto de tocarem música americana com uma estética britânica: interessava-nos mais a elegância do que a paixão, interessava-nos a concisão. Nos Stones, uma canção nunca durava mais do que três minutos... há alguma dos Allman que seja inferior a cinco? Suponho que tudo isso permanece no que faço agora. A maioria dos músicos poderá ser americana mas a estética é europeia.


Outro aspecto que quase se esfumou da sua escrita foi a obsessão pelo "name dropping" enquanto tique de estilo...
Nunca me pareceu que fosse exactamente um tique. Mas, neste álbum, nem crio, necessariamente, as personagens através de imagens. Algumas delas nem sequer têm personagens, são apenas acerca de ideias. ‘If I Were A Song’ trata de uma das perguntas que mais detesto que me façam: essa canção é sobre quê? Uma canção não é acerca de coisa nenhuma, é uma coisa como isto (pega numa jarra), uma entidade. Uma entidade estranha porque não é corpórea, não a podemos agarrar mas pode ser escutada e encarada de várias formas. Os pontos de referência podem ser outras canções.

O que permanece constante é a sua preocupação com a passagem do tempo: em Mainstream, tinha uma canção, "29", acerca da tragédia iminente de ser trintão; há três anos, em Antidepressant, escrevia acerca de um tipo "no longer angry, no longer young, no longer driven to distraction, not even by Scarlett Johansson"; numa entrevista, declarou que não o entusiasmava demasiado a ideia de que, aos 75 anos, será, de certeza, parecido com o Orson Welles; e, agora, não foi, seguramente, um acaso que a porta que surge na capa do disco tenha o número 49...
Foi coincidência, foi. Uma boa coincidência mas não foi por esse motivo que escolhi essa fotografia. Por um lado, estou feliz por ser mais velho. Os jovens são estúpidos e é preciso muito tempo até conseguir libertá-los da estupidez e levá-los a ter, pelo menos, alguma noção das suas limitações. O que é também a beleza da coisa: pensar que sabemos tudo, fazermos uma viagem e imaginarmos que conhecemos o mundo todo. E que também proporciona a confiança indispensável para sermos ambiciosos. Mas do lado físico do envelhecimento... não gosto mesmo nada! Ter sido fotografado durante toda a nossa vida adulta e, de repente, vermos fotos actuais... brrr! A minha piada actual é que, durante 24 anos, escrevi acerca do envelhecimento. Agora, escrevo sobre ser velho.


(2010)

3 comments:

Anonymous said...

Como é que ninguém comenta uma excelente entrevista como esta? Parabéns ao João Lisboa. Consegue levar o Lloyd Cole a falar de temas aos quais ele normalmente foge. Excepcional entrevista!

João L. B. Guimarães

João Lisboa said...

Os comentários não são obrigatórios... :)

Mas obrigado pela opinião.

fallorca said...

Não perde pela demora, fiufiu...