SOBRE O FIO DA NAVALHA
Elvis Costello é o tipo de personagem que, mesmo dispondo de um óptimo pretexto para compor a sala de troféus à custa das homenagens de admiradores famosos, se, da sua parte, a admiração não é retribuída, não pesa as palavras e parte a loiça toda. Em 1985, aquando da publicação de Less Than Zero, de Bret Easton Ellis (intitulado a partir de uma canção sua), interrogado pela “Rolling Stone” sobre se conhecia o escritor, respondeu lançando-se numa paródia demolidora do estilo de Ellis que, ainda hoje, este admite ter sido um dos momentos da sua vida em que se sentiu mais magoado e humilhado ao ver-se publicamente ridicularizado pelo seu ídolo. Não tanto, porém, que não tenha chamado ao seu último romance Imperial Bedrooms (lançado há poucos meses), outra canção de Costello. No entanto, embora não fugindo demasiado do mesmo registo, quando, agora, pergunto a Elvis se já o leu e o que pensa dele, primeiro, ri-se, depois, diz que não, não o leu e, a seguir, afirma “Olhe, se quiser, podemos dizer que é a nossa tournée de reunião da banda...”
Não que Costello se tenha deixado amansar demasiado pela felicidade doméstica que parece ter encontrado ao lado de Diana Krall e do par de gémeos que procriaram. Basta uma observação inocente acerca do facto de o seu novo álbum, National Ransom, ter sido, como o anterior, Secret, Profane & Sugarcane (2009), produzido por T-Bone Burnett, seu velho cúmplice desde King Of America (de 1986, uma das suas mais veneradas gravações) e Spike (de 1989, e um dos criticamente mal-amados da sua discografia) para que a alusão ao suposto estatuto “menor” de Spike – mesmo que resguardado pela minha confissão de que nunca partilhei dessa opinião – desencadeie uma diatribe “acerca do que os críticos percebem disto”: “Trabalhei com excelentes produtores como o Nick Lowe ou o Mitchell Froom mas a relação musical que tenho com o T-Bone Burnett é, realmente, muito especial. Ele é o género de produtor que continua a preocupar-se com aqueles detalhes que a maioria dos outros já não leva em conta. O Spike poderá não ter caído nas boas graças de muitos, mas foi um dos meus discos que mais cópias vendeu. Produz-se muita opinião, especula-se imenso acerca da relevância disto e daquilo, mas, com demasiada frequência, há aspectos igualmente decisivos a que quem tinha obrigação de o fazer não se presta atenção. Podem apontar este ou aquele erro, opinar sobre o que lhes apetecer mas, em última análise, não passa de ar em movimento. Eu estou demasiado ocupado a fazer as coisas para perder tempo com isso”. O que também não deixa de oferecer um interessante contraponto relativamente aquele seu outro ponto de vista segundo o qual “mesmo que não arrastemos o público atrás de um disco não é por isso que ele será melhor ou pior. A arte não funciona através do voto democrático depositado na urna das opções estéticas. Na melhor das hipóteses, poderá ser uma ditadura benévola”.
De facto, “amansar” é palavra que não poderia ser menos adequada para descrever um álbum que Costello dedica aos “bankrupt times, whenever they may be” e, na própria canção-título, desenha um cenário de guerra social aterradoramente em sintonia com o espírito do tempo (“Around the time the killing stopped on Wall Street, you couldn’t hold me, baby, with anything but contempt”) e vomita nojo sobre os responsáveis pela catástrofe (“Did you find how to lie? Did you find out just how to cheat? The elite bleat, they’re obsolete”). Não esqueçamos: este foi o homem que, nos tempos de Thatcher, “when England was the whore of the world and Margaret was her madam”, escreveu “Tramp The Dirt Down” (“there's one thing I know, I'd like to live long enough to savour, that's when they finally put you in the ground, I'll stand on your grave and tramp the dirt down”) e “Shipbuilding”, a devastadoramente bela assombração sobre a guerra das Malvinas que a voz de Robert Wyatt cantaria como um requiem ateu.
Ainda assim, segundo ele, nem se vê na condição de "songwriter" especialmente “político” nem acredita demasiado numa escrita ostensivamente militante: “A codificação das canções políticas e ‘de protesto’ que as tornou imediatamente previsíveis obriga-nos a ser um pouco mais subtis. Podemos supor que uma canção contém algum potencial de mobilização mas isso pouco significa se estivermos a cantar para um grupo de pessoas que já comunga dos nossos pontos de vista. É a forma como o fazemos que importa. ‘Tramp The Dirt Down’ foi uma canção que me saiu de jorro. Mas prefiro apostar na intensidade e na verdade das personagens que as habitam – como em ‘Shipbuilding’ ou em diversas deste álbum. Vale, certamente, a pena escrever e cantar canções, em especial, neste momento, em que se caminha sobre o fio da navalha. Tentar entrever alguma luz, alguma decência e alguma verdade no interior de nós e no meio de um mundo que, de outra forma, seria absolutamente insuportável, é um dos melhores motivos para não desistirmos de continuar a compor, a gravar discos e a dar concertos".
(2010)
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