22 October 2010

CANTAR NÃO É UMA ALEGRIA




















A entrevista com Camané estava, sensivelmente, a meio quando, à mesa da esplanada de Benfica onde conversávamos, três miúdos – treze, catorze anos, no máximo – se aproximam e, tão tímidos quanto determinados, se dirigem a ele: “É o Camané, não é?...” Ele (dir-me-ia a seguir “Quando vou ao Bairro Alto, à noite, e isto, às vezes, acontece, até fico envergonhado...”), não muito menos embaraçado, confirma e escuta-os declarar quanto gostam da música e dos fados que canta. Só terá sido uma espécie de episódio-“Twilight Zone” lisboeta para quem ainda não se tenha realmente apercebido de como a ele – com novo álbum, Do Amor e dos Dias – se deve a definitiva emancipação do fado pós-Amália e a sua consagração como elo natural, indispensável e transgeracional da música portuguesa contemporânea.

Ao chegares ao sexto álbum, quando partes para uma nova gravação, o que mudou (se alguma coisa mudou) na forma como a abordas?
As coisas agora acontecem de uma maneira, talvez, mais metódica. Este é o meu disco mais conceptual, sobre o amor, o ódio, a raiva. Não é um disco romântico, é sobre o quotidiano do amor, com alguma ironia. Inspirei-me em certos fados, do Marceneiro, por exemplo, que sempre estiveram comigo. Quando falei com a Manuela de Freitas para ela escrever “A Guerra das Rosas”, pedi-lhe para ela o fazer com essa ironia.



















Não abandonando o material tradicional do fado, tens vindo a optar por temas que não são exactamente fados nem pela origem nem pela sua própria configuração musical. Apesar de sempre teres afirmado que o fado, em si mesmo, é inesgotável, isso não será um sinal de que sentes que, de certo modo, ele te limita?
De facto, nunca achei que o fado tivesse limites. Pela sua personalidade melódica e também pela sua simplicidade, consegue-se revisitá-lo de uma maneira que não tem fim. Mas apeteceu-me também fazer o que a Amália, com o Alain Oulman, ou o Carlos do Carmo já tinham feito: pegar em temas que, originalmente, não eram clássicos mas que, depois, se tornaram. Trabalhar todos estes anos com o José Mário Branco também foi muito importante. Logo a seguir ao 25 de Abril, ele tinha composto o “Fado da Tristeza” e o “Fado Penélope”. Hoje, já são fados tradicionais. Neste disco, há o “Fado Pombal” que tem uma estrutura do fado tradicional de Lisboa mas, depois, há uma parte que soa a Coimbra. Como não é uma coisa nem outra mas está entre Lisboa e Coimbra, ele chamou-lhe “Fado Pombal”.

De qualquer modo, tens feito concertos em que abordas reportório completamente exterior ao fado, como standards franceses e americanos, canções pop portuguesas, dando a ideia de que sentes necessidade de respirar outros ares, de, de vez em quando, cometer um pequeno adultério (muito fadista) em relação ao fado...
Apetece-me, pontualmente, visitar outras coisas. Com os Humanos, foram duas semanas para gravar o disco e quatro concertos. O dos standards foram sete concertos. Eu sou cantor, não sou compositor e, por vezes, preciso de algumas razões para fazer outras coisas. A minha música é o fado mas sabe bem, de vez em quando, recarregar as baterias noutros lados.














Mas nunca te sentiste, realmente, saturado do fado?
Quando comecei a ouvir fado - o meu bisavô e o meu avô cantavam -, aquilo irritava-me imenso, achava esquisita aquela característica do canto. Não foi nada natural, irritava-me aquela voz fadista do meu pai. O que é certo é que, sem querer, acabei por herdá-la. Quando tinha doze ou treze anos e cantava outras coisas que não fado, afadistava-as e os meus amigos gozavam comigo. Tinha apenas três discos que não eram de fado: um do Aznavour, um do Sinatra e outro dos Beatles. Eu até pensava que não tinha jeito para cantar mas, quando comecei a cantar fado, com todas as inseguranças, apercebi-me de que, por ali, conseguia cantar.

A Cristina Branco – na minha opinião, contigo, a outra grande voz actual do fado – diz, sem hesitar, que canta fados mas não é fadista. Tu, mesmo cantando outro reportório, sempre te afirmaste como fadista...
E muito claramente. Uma coisa não é pior nem melhor do que a outra. Isso tem a ver com o percurso de cada um. Uma coisa é descobrir-se o fado aos vinte anos e outra ouvi-lo aos sete quando já o pai, o avô e o bisavô cantavam.

Como cantor, usas, hoje, a voz de forma diferente?
Claro que há crescimento e maturidade e, também mais liberdade. E a confiança e segurança que tive de aprender a ganhar. Há cantores que as têm naturalmente. Eu tive de aprender. Eu não caí de paraquedas, foi lento. Mas bom e teve uma certa consistência.

Sentes-te menos à prova, menos sob avaliação?
Isso também. Mas não deixo de ter algumas inseguranças na mesma. Não tenho discos meus em casa. Quando os oiço, só consigo olhar para os defeitos.













Se não fosses tu, ouvirias um disco teu?
Talvez ouvisse. Mas, como sou, não oiço (risos) Não consigo ter essa distância. Há coisas em que me apercebo de alguma falta de consistência de que ando à procura ainda hoje. Pode ser algum excesso de perfeccionismo mas lembro-me de ouvir discos meus que me deixavam deprimido. Não pelos temas, não pela gravação, só por minha causa.

Mas, quando estás em palco, não existem momentos em que tens consciência de que cantaste realmente bem?
Sim. Mas só quando estou a cantar. Se vou ouvir a gravação, já não sinto o mesmo. Até já lido bem isso, com a minha cabeça e com os meus fantasmas, já os sei mandar calar.

Provavelmente, uma consequência disso é também a tua admirável atitude de nunca fazer a vida fácil ao público: nunca entras pela via das palminhas e dos coros, quem aceita ir ouvir-te, fica obrigado a participar de toda aquela austeridade, sem crowd pleasing algum...
Mas é que também não é fácil para mim. Há aqueles artistas que têm a atitude que cantar é uma alegria, uma maravilha. Por vezes, em palco, tenho consciência de que as coisas não estão a sair bem e não consigo sair daquele ataque de pânico, não consigo libertar-me dos meus maus sentimentos todos e aquilo paralisa-me, impede-me de ter a liberdade de entregar as músicas ao público. Mas não me posso ir embora, é muito pior se me for embora. E, aos poucos, as coisas passam. Cantar não é uma alegria, é como a vida: é alegre, é sofrida, é dor, é prazer, é isso tudo junto. Implica, muitas vezes, mais sofrimento do que prazer. E é uma necessidade.

(2010)

5 comments:

Lola. said...

Camané é um fadista. A entrevista já é um fado.
Bela introdução. Adoro o Camané.
Mas ele me parece uma encarnação masculina da Amália.
Não sei não...

Táxi Pluvioso said...

Ó! o chão cultural onde o povo se deita, precisamos de mais para que nos oiçam em Madrid e além.

Tenho lido os chichisbéus que escrevem para os jornais. A princípio, aquela recomendação de ler um artigo de um janota qualquer, pareceu-me a coisa mais pateta que tinha lido este ano, mas não, afinal dá resultado, têm-me elucidado muito sobre a situação actual e passada. Um povo lido sabe mais. Até compreendi que o espanto dos lusos quando viram, na TV, pretos e ciganos aos tiros, se deveu a um erro informático: os únicos erros existentes em Portugal. Primeiro pensei que fosse por que nunca viram ciganos ou pretos ao vivo, nem tiros, ou pior, nunca conviveram com eles, viam-nos à distância, quando vão ao café. Mas não. Foi erro informático. Porque existe profusa literatura sobre a reconversão das cidades na América, nos anos 50, e os problemas causados. Livros científicos, ó como os lusos gostam de ciência, de urbanistas, arquitectos, psicólogos, e como gostam os lusos de psicologia, e os lusos leram-nos, com certeza. O espanto deveu-se a erro informático.

E eu que pensava que os artolas dos jornais apenas vendiam a mercadoria do seu dono: ideias para pensar, visões do mundo, livros, discos, filmes, gadgets modernos, etc. e xtc, mui enganado estava. bfds

Táxi Pluvioso said...

... ah! e censura oblige, o bidãozinho em baixo clicar, no Arrastão nem do mail passo. E para não desaparecer este link com uma boa colecção de vídeos:

http://singleladad.blogspot.com/2010/10/music-videos-of-eric-wareheim-of-tim.html

bfds

agent said...

Bela entrevista. Grande voz/artista.

Anonymous said...

I wonder why I can't see full text in your RSS feed, do you allow full articles?
No more hate, no more love. Just be, and everything will make sense. (not)
I write like mad, every day, and no one visits my blog, that looks similar to yours. What could I be doing wrong?
I was once trying to write jokes, and it didn't turn out too well. I'm not the brightest lightbulb, and I live with my mom.

Suburbia: where they tear out the trees & then name streets after them.